sexta-feira, 19 de abril de 2024

Imortalidade da alma e o bem mais elevado

 Por Georg Sans (Georges*

Sobre a Metafísica Prática de Immanuel Kant

Em um artigo polêmico de 1766, Immanuel Kant fala de seu destino de estar apaixonado pela metafísica[1]. Poucos são os leitores do filósofo de Konigsberg que se preocupam seriamente em se perguntar o que é essa paixão fatídica. Pelo contrário, continua-se a transmitir de uma geração para outra a imagem estereotipada de Kant como aquele que destruiu a metafísica escolástica. Kant teria contestado a evidência da existência de Deus, negado a imortalidade da alma, e desmascarado a hipótese da liberdade humana como uma ilusão cosmológica. Somente o minguível remanescente de uma fé prática permaneceria, muito para a filosofia e muito pouco para a religião.

E, no entanto, não é possível duvidar que o próprio Kant considerava as coisas de uma maneira completamente diferente. Vinte anos depois, no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura, o filósofo declara expressamente que ele tinha que “colocar de lado o conhecimento, para abrir caminho para a fé”.[2] Com o conhecimento de que ele teve que deixar de lado Kant não significa tanto algum conteúdo específico, mas sim os fundamentos da metafísica tradicional. Os argumentos apresentados por Leibniz e Wolff em favor, por exemplo, da substancialidade e, portanto, também da sobrevivência da alma tornaram-se cada vez mais problemáticos. Ao mesmo tempo, atribuiu um grande valor existencial à doutrina da imortalidade, bem como à existência de Deus e à liberdade de ação, pela qual se sentia muito orgulhoso de ter colocado em prática uma capacidade que torna acessível o conhecimento daquelas áreas que permanecem fechadas ao conhecimento teórico.

Deixemos de lado o difícil problema do que significa exatamente que o conteúdo da metafísica prática de Kant não pode ser conhecido, mas deve ser acreditado, e vamos lidar com o conteúdo para cuja aceitação ele está comprometido. Queremos prestar especial atenção aqui ao primeiro postulado kantiano, a tese da imortalidade da alma. Embora os temas da existência de Deus e da liberdade humana tenham considerável relevância mesmo na filosofia de hoje, o mesmo não pode ser dito para o da imortalidade. Certamente, a doutrina da ressurreição ou possivelmente da reencarnação pertence ao núcleo essencial da fé das diferentes religiões, mas na esfera da filosofia a alma imortal passa em silêncio.

Diante desse fato, pode ser interessante refletir sobre as razões que levaram um filósofo como Kant a dedicar amplo espaço à imortalidade em sua metafísica. A fim de antecipar os resultados das seguintes considerações, consideramos os argumentos de Kant a este respeito substancialmente pouco convincentes. No entanto, em sua filosofia prática, há muitas ideias que tornam o tema atual de uma maneira diferente. Além disso, no curso de nosso raciocínio, abordaremos uma série de problemas relevantes do lado filosófico, como a ideia do bem supremo, o grau de virtude que nós, homens, podemos alcançar, o papel da liberdade na moralidade e, finalmente, a relação entre virtude e felicidade.

A ideia do bem supremo

De acordo com uma concepção bastante difundida, o mérito de Kant para a filosofia prática está acima de tudo na elaboração do chamado imperativo categórico. Este último constitui para Kant o único fundamento da determinação da boa vontade moral. Somente aquele que decidiu expressamente conformar as máximas de sua conduta à lei moral pode fazer o bem. A ética de Kant, portanto, não pressupõe um certo conceito de bem, do qual os deveres éticos devem ser deduzidos, mas Kant, ao contrário, estabelece antes de tudo o princípio moral fundamental, do qual deriva a ideia do bem. A sua ética encontra a sua origem na consciência individual, ou mais precisamente na voz da consciência, que nos leva a não explorar outra a realizar os seus próprios interesses, mas a considerar cada pessoa como um fim em si mesmo, dotado de uma dignidade absoluta.

Kant, no entanto, não se contenta apenas em refletir sobre o dever moral. Alistado por seu amor pela metafísica, ele ainda se pergunta qual é o objeto da vontade moral, isto é, o que é o senso do bem. Na segunda metade da Crítica das Boas Práticas, ele elabora a teoria do bem perfeito que deve guiar aqueles que agem moralmente. Embora ele chame esse objeto da razão prática de “estava bem”, seguindo nesse sentido a tradição clássica, sua ideia difere consideravelmente do summum bonum de Aristóteles ou Tomás de Aquino. O aspecto que o caracteriza mais profundamente é que, para Kant, o bem supremo contém dois elementos distintos, a saber, por um lado, a virtude e, de outro, a felicidade, ou a felicidade.

Ninguém certamente contestará o fato de que a ideia do bem tem a ver com moralidade. Para Kant, “a perfeita adequação da intenção à lei moral é a condição suprema do bem mais elevado”.[3] Mas, a este respeito, pode permanecer aberto, antes de tudo, se, em virtude, se deve, antes de tudo, compreender uma intenção irrepreensível ou se se pensa nas ações individuais que cada um realiza com base em suas boas intenções. Em última análise, uma coisa condiciona a outra, porque somente se o bem é constantemente feito é alcançado pela virtude, assim a intenção, se é animada pela virtude, é sempre manifestada em boas obras. Apesar de alguns obscurs nos detalhes, sobre os quais falaremos no parágrafo seguinte, o primeiro elemento do poço supremo é, portanto, bem inserido na imagem tradicional de Kant como um defensor do dever moral absoluto.

É mais difícil entender é por que o bem mais elevado para Kant tem necessariamente a ver com a felicidade do homem. Ao primeiro olhar com o discurso sobre a bem-aventurança, ele parece introduzir um elemento estranho em sua filosofia prática, fundada exclusivamente no conceito de dever moral. E, de fato, a felicidade não deve ser entendida como algo cuja realização nos leva a agir moralmente. O que é bom no nível moral deve ser feito apenas porque é o bem ou, como diz Kant, “para o dever”. Mais surpreendente é a naturalidade com que ele fala de felicidade como um dos elementos que constituem o objeto da razão prática.

Sobre este ponto, devemos nos referir à tradição. Começando com Aristóteles, os filósofos sentiram que a eudaimonia é uma das tendências essenciais do homem. Enquanto os antigos e medievais colocaram a felicidade a ser alcançada em um plano espiritual, os empíricos ingleses fizeram com que consistisse em prazer sensível. A partir desse momento, uma concepção muitas vezes predomina segundo a qual os esforços para satisfazer nossos desejos e nossas necessidades constituem um elemento essencial da natureza humana. Embora não seja nossa intenção negar que essas fontes influenciaram a concepção de felicidade de Kant, acreditamos que há uma razão muito mais provável pela qual o bem supremo deve conter uma espécie de sentimento de satisfação.

Para simplificar o discurso, chamemo-nos para a figura do Bom Samaritano do Novo Testamento. Sem ninguém tê-lo forçado e sem pensar em qualquer ganho pessoal, este samaritano ajuda o judeu atacado pelos bandidos e deitado ferido na estrada, e o leva para a estan mais próxima. O objeto ao qual a vontade do samaritano tende, segundo a parábola de Jesus, é sem dúvida o bem moral. Ele pretende fazer exatamente o que a lei moral prescreve, isto é, para ajudar os necessitados. No entanto, o objeto de sua vontade não termina no fato de que ele revive sua boa intenção e a coloca em prática. O samaritano quer fazer algo mais: ele tende em particular a fazer os feridos não passarem pelas feridas, mas curar. Certamente, a realização desse propósito depende apenas em parte da boa vontade do samaritano e, portanto, assume relevância secundária ao julgar sua ação moralmente. Um médico experiente, por exemplo, pode proporcionar um alívio mais eficaz do que um viajante de negócios pode dar. E o resultado da ajuda fornecida dependerá também da gravidade das lesões. Mas não seria razoável pensar que o samaritano não tem pelo menos o desejo de que a pessoa ferida possa realmente ser ajudada por sua intervenção.

De nossa parte, chamamos isso de aspecto pragmático da boa ação moral e acreditamos com o que toda intenção moral por necessidade lógica implica a vontade de realmente produzir o efeito que corresponde a essa intenção. Para alcançar plenamente a virtude, é certamente suficiente para o samaritano fazer tudo o que está em seu poder para salvar os feridos, mas o “estava bem” implícito nesta situação é obviamente perfeito se esse homem atacado por bandidos é realmente melhor. A realização deste fim, isto é, o êxito da acção moral, provocará um sentimento de satisfação tanto nos feridos como no Samaritano: no primeiro porque se sente melhor, no segundo porque a sua acção alcançou o resultado que ele propôs. Em nossa opinião, é uma experiência desse tipo que Kant descreve com o conceito de bem. Ele define a felicidade como “a condição de um ser racional no mundo, para a qual, em toda a sua existência, tudo vai de acordo com seu desejo e vontade” [4]. Se um sujeito age de acordo com princípios morais, o conceito de bem inclui claramente o sucesso de suas boas ações. Se o conceito de bem supremo contivesse em si apenas o elemento da moralidade, seria obviamente incompleto.

Perfeibilidade moral

A metafísica prática de Kant parte da ideia do bem supremo. Essa ideia é um pensamento metafísico, na medida em que não apenas nela está conectada entre si o elemento da virtude e a da bem-aventurança, mas porque a razão acredita que ambos os dois elementos e sua conexão são elevados à maior perfeição. Quase como se estivesse conduzindo uma espécie de experimento mental, Kant reflete sobre o problema de como se deve retratar o objeto final ou o cume de uma razão prática que está sujeita às exigências da lei moral. Ele também reflete sobre as condições para que tal objeto seja verdadeiramente suposto. Em resumo, a ideia de muito significa que a virtude perfeita pode ser pensada combinada com a felicidade perfeita de uma maneira perfeita. Para entender o argumento de Kant sobre a imortalidade da alma, tudo depende da primeira parte dessa afirmação, isto é, a perfeição da virtude. Qual, então, a “adequação perfeita acima mencionada da intenção para a lei moral”?

O próprio Kant identifica repetidamente a perfeição moral com a santidade da vontade. Mas, ao mesmo tempo, ele enfatiza continuamente que o homem, como homem sensível, nunca pode alcançar plenamente o ideal de santidade. Não queremos insistir aqui que a declaração de Kant está além de todas as exceções, porque como premissa de seu raciocínio é suficiente para o leitor concordar que sua virtude não é perfeita e não será perfeita no futuro. Neste ponto, pode parecer apropriado abandonar completamente a ideia de perfeição moral. Em vez de lutar pela santidade da vontade, devemos contentar-nos com as nossas limitadas possibilidades. Kant viaja de outra maneira. Ele pede para adotar “um processo para o infinito, para essa adequação completa”, isto é, a fé em “uma existência e uma personalidade do próprio ser racional, duradoura até o infinito”[5]. Com este postulado da imortalidade da alma, Kant cria a possibilidade de se aproximar do ideal de uma vontade sagrada, sem o conceito do supremo bem esvaziado em seus olhos.

O postulado de Kant da imortalidade tende, portanto, tende a supor um tempo de prova moral prolongada ao infinito. Sobre este ponto, a concepção kantiana difere significativamente da cristã, para a qual a morte representa o último ponto possível para a conversão. Deve-se perguntar, acima de tudo, se o postulado vai conseguir o que Kant promete. Examinemos, portanto, mais cuidadosamente a ideia de um progresso moral infinito. Como já dissemos, entre os pressupostos do raciocínio de Kant é também o que ninguém jamais atinge o estado de perfeita virtude. Isso significa antes de tudo que todo homem, em qualquer momento de sua existência, pode fazer o mal. Mesmo um alto grau de virtude não se preserva de transgredir a lei moral, pelo menos em alguns casos. Pelo contrário, é um elemento essencial da moralidade que todas as ações morais sejam livres e, portanto, em um instante, posso cometer algo errado. O progresso infinito, portanto, não tira nada da possibilidade de cair no vício. O crescimento da virtude não elimina a liberdade para o mal. Mesmo que no sentido kantiano fossemos imortais e progredissemos constantemente para melhor, em termos de termos essa condição nunca mudaria.

A suposição kantiana de uma abordagem assintomática à perfeição também leva a outra consequência indesejável. Se é verdade que minha ação não corresponde a qualquer momento ao ideal de santidade, então cada dia aumenta a quantidade de mal que eu cometo. Quanto mais me aproxima da virtude, mais estreito, mais estreito, certamente se torna minha relativa parte das más ações; mas a volta negativa do progresso infinito consiste no fato de que a quantidade de mal pela qual sou responsável cresce cada vez mais. Agora, Kant acredita expressamente que, pelo menos aos olhos de Deus, o progresso contínuo em direção a melhor aparece como a virtude perfeita. Deus “desaparece nesta série, para nós infinitos, toda a adequação à lei moral”[6]. Mas a consequência não é de todo convincente. Com o mesmo direito, pode-se concluir que Deus abraça com um único olhar a totalidade de nossas más obras e, portanto, a inadequação da intenção à lei moral. A suposição da imortalidade, portanto, não cumpre a função pela qual Kant introduz o postulado. Não se pode entender como a existência do infinito duradouro pode resolver a dificuldade da imperfeição moral do homem. A hipótese da imortalidade, portanto, não ajuda a conceber a virtude perfeita como o primeiro elemento do bem supremo.

A virtude e a felicidade

Apesar desse julgamento desencantado, seria errado considerar o plano de Kant de construir uma metafísica prática falhando completamente. Em vez disso, é apropriado refletir de uma nova maneira sobre o conceito do bem supremo. O próprio Kant deu o título de “Dialética” à seção correspondente da Crítica da Razão Prática, porque ele trata você com as contradições e tensões que existem entre virtude e felicidade. Embora a moralidade dependa apenas do livre arbítrio do sujeito, quando se trata de felicidade, parece que é algo que o homem pode alcançar com sua própria força apenas de maneira condicional. As razões para isso são diferentes. Em primeiro lugar, nossa felicidade depende de muitos fatores externos que escapam ao nosso controle. Apesar de todos os avanços da ciência e da tecnologia, a humanidade ainda está longe de ser capaz de dominar e influenciar o curso da natureza, de modo a evitar a dor e o sofrimento. Muitas vezes, são os homens que impedem a felicidade uns dos outros. Os maus atos de ambos inevitavelmente têm consequências para o bem-estar dos outros. Kant também sugere outra razão, muitas vezes negligenciada: o fato de que normalmente não sabemos o que precisamos ser felizes um momento depois. Mesmo que pudéssemos perceber infalivelmente todas as nossas intenções, nossa felicidade não seria perfeita para isso. O bem-estar duradouro do homem naufraga não só por causa de suas limitadas possibilidades físicas ou falta de boa vontade, mas também porque ele não pode saber quais são as condições que lhe permitem ser verdadeiramente feliz e satisfeito.

Diante desse fato, a ideia do bem supremo é mais uma vez problemática. O que devemos autorizar a supor que existe alguma conexão entre felicidade e moral? Quem ou o que poderia nos assegurar que nossas boas ações realmente alcançam seu propósito? Como se pode excluir que, no final, aqueles que não se importam com a virtude fazem sucesso? Para Kant, a felicidade e a moral só podem ser pensadas em unidade com a condição de que haja um Deus “que contém o fundamento dessa conexão, isto é, do ajuste exato da felicidade à moralidade” [7]. Só Deus é capaz de criar o mundo com a sua ordem natural e, ao mesmo tempo, ajudar os homens a alcançar a felicidade de acordo com as suas boas intenções. Não razão teórica, mas essa prática, portanto, fornece a base para nossas crenças metafísicas.

A metafísica prática de Kant é baseada na suposição de que há uma correspondência total entre a ordem física da natureza e a ordem moral de vontade e dever. A tese da harmonia está na raiz da ideia do bem mais elevado e aos olhos de Kant só pode ser sustentada porque a razão reconhece Deus como o criador do mundo e do homem. Ao contrário das provas tradicionais da existência de Deus, o postulado kantiano não se baseia em princípios teóricos, como o da causalidade, mas deriva da reflexão sobre o sentido último de agir para o dever. Se não houvesse esperança em uma compensação entre felicidade e virtude, mas se dependesse apenas do acaso que nossa ação moral é coroada de sucesso, certamente não prejudicaria o dever moral, mas revelaria que o conceito do bem supremo é uma ilusão. Na metafísica de Kant, portanto, não se trata de algumas convicções escolhidas mais ou menos arbitrariamente, mas da conformidade da prática da razão consigo mesma.

A partir da tese da harmonia, vale a pena olhar novamente para os dois elementos que constituem a ideia do bem maior. Como a razão deve reagir ao fato de que a virtude humana nunca é perfeita? A reflexão sobre o postulado kantiano da imortalidade concluiu que uma existência que continua ao infinito exacerba o problema, em vez de resolvê-lo, pois o homem em todos os momentos possui a liberdade de escolher o mal novamente, e uma vez que a quantidade de ações malignas que se acumulam no curso de uma vida está crescendo continuamente. Por essas duas razões, pode até ser considerado que é um privilégio que o homem não existe eternamente, mas que o tempo das escolhas relevantes no nível moral termina com a morte. Uma vez que, no entanto, a morte não faz o mal feito durante a vida inexistente, o homem não pode evidentemente realizar de si mesmo a reivindicação kantiana de uma perfeita adequação da intenção à lei moral.

Portanto, permanece como a única saída que Deus perdoa o homem a sua culpa. Kant não pretende resignar-se a tal solução, porque em sua opinião todos os tipos de indulgências e toleraria que entraria em conflito com a justiça divina. O fracasso de seu argumento sobre a imortalidade da alma deve ser uma razão suficiente para considerar seriamente a alternativa que ele excluiu. É realmente mais “razoável” pensar em um progresso moral contínuo do homem, em vez de confiar que a justiça de Deus pode subsistir junto com sua misericórdia? Embora não se possa dar uma resposta filosófica definitiva a esta pergunta, deve ficar claro que a ideia de perfeição moral não leva necessariamente à fé na imortalidade, mas pode igualmente despertar uma profunda reflexão sobre o fato de que o homem está sujeito ao perdão e à existência de um Deus misericordioso.

Se considerarmos agora o outro elemento do bem mais elevado, a felicidade, vemos quase uma imagem oposta. Como vimos, Kant postula a existência de Deus como uma condição necessária para que haja uma correspondência entre a ordem física e a moral. Se não houvesse Deus, não haveria razão para acreditar que nossa ação moral exerce uma influência decisiva sobre o bem da humanidade. É estranho que Kant leve tão pouco em consideração o fato de que a harmonia entre moralidade e felicidade, inerente ao conceito de bem mais elevado, encontra tão pouco respeito em nossa experiência diária. Como mostra suficientemente a longa história do debate sobre a teodiceia, a realidade oferece numerosos exemplos que nos levam a duvidar não só da misericórdia de Deus, mas também da sua justiça. A admissão da existência de Deus não é de forma alguma suficiente para garantir que a virtude e a felicidade sejam sempre combinadas. O que sabemos sobre o mundo físico vai contra a suposição de que todos os homens realmente alcançam um grau de felicidade correspondente à sua intenção moral.

Como no caso da perfeição moral, também aqui se oferece a solução para deixar de lado completamente a ideia do bem supremo e para deixar a esperança na felicidade. Quem persiste em acreditar que o bem supremo é atingível e com Kant continua a supor que a felicidade é o estado de um ser racional “a quem, em toda a sua existência, tudo vai de acordo com seu desejo e vontade”, ele deve pensar que sua existência em sua totalidade não está limitada à vida terrena. Em vez de recorrer à imortalidade como condição de progresso moral, é muito mais óbvio ver nela a condição para a verdadeira felicidade. Esta proposta não é uma consolação meável projetada na vida após a morte, mas a tentativa de esclarecer o objeto pela nossa razão prática.

Uma vez que o homem não é apenas moralmente obrigado a fazer o bem, mas também realmente quer alcançar esse bem, surge o problema do que permanece além do dever moral e das condições metafísicas subjacentes às nossas possibilidades físicas para que esse bem possa ser realizado. A consideração que Kant propõe a esse respeito soa assim: a correspondência entre moralidade e felicidade, inerente à ideia do bem mais elevado, só pode ser pensada como possível se um Deus pessoal deve existir. No entanto, uma vez que a bem-aventurança nem sempre é alcançada neste mundo físico por alguém que age moralmente, a continuação da existência além da morte também vai para o que é pensável no nível filosófico. Se alguém supõe a imortalidade da alma, isso não resulta, como observou Kant, mais uma oportunidade para demonstrar sua virtude, mas o segundo elemento do bem supremo, a felicidade, é revelado possível. Desta forma, mais uma vez pode-se ver como as reflexões de Kant sobre o conceito de bem supremo realmente levam a perspectivas metafísicas válidas. Mesmo aqueles que não concordam com suas conclusões, terão que confrontar pelo menos seus argumentos aqui. Em qualquer caso, deve ficar claro que a questão da imortalidade da alma não pode permanecer alheia ao problema de uma vida boa.

La Civiltà Cattolica 2012

A reprodução é reservada

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[1] Veja I. Kant, Sonhos de um visionário esclarecido com os sonhos da metafísica, em escritos precríticos, Roma – Bari, Laterza, 1982, 399.

[2] Id., Crítica da Razão Pura, Milão, Bompiani, 2004, 51.

[3] Id., Crítica da Razão Prática, Milão, Bompiani, 2004, 261

[4] lá, 267.

[5] Ivi, 261.

[6] Ivi, 263.

[7] lá, 267.

[8] Lá, 265.

 *Professore di Filosofia religiosa e disciplinare presso l'Università di Monaco di Baviera.

OBS: Texto em italiano. Tradução pelo Google sem correção.

Fonte:  https://www.laciviltacattolica.it/articolo/immortalita-dellanima-e-sommo-bene-sulla-metafisica-pratica-di-immanuel-kant/?utm_source=Newsletter+%22La+Civilt%C3%A0+Cattolica%22&utm_campaign=6e6e583091-Newsletter_quaderno_4172&utm_medium=email&utm_term=0_9d2f468610-6e6e583091-85986793&ct=t(Newsletter_quaderno_4172)&mc_cid=6e6e583091&mc_eid=2fdb252660

Os limites da liberdade

 Por

Os escritores John Steinbeck (Creative Commons) e William Faulkner (Library of Congress) 

Os escritores John Steinbeck (Creative Commons) e William Faulkner (Library of Congress)

Romances de autores estadunidenses seguem atuais ao discutir angústias nacionais e ressoar debates do século XXI até mesmo na periferia do capitalismo


A leste do Éden (1952), um dos mais influentes romances estadunidenses do século XX, ilustra uma teoria: “Os seres humanos são apanhados – em suas vidas, em seus pensamentos, em suas necessidades e ambições, em sua avareza e crueldade, e em sua bondade e generosidade, também – numa teia do bem e do mal”.

Na obra, John Steinbeck localiza a humanidade entre dois polos extremos da existência. O conceito-chave do livro é um termo hebraico, Timshel, que pode ser traduzido como “tu deverás” ou “tu poderás”. A segunda alternativa é eleita por Steinbeck, que toca a capacidade de escolha. O escritor acena, assim, para um mote que perpassa a literatura universal: a liberdade.

Os limites da liberdade – em especial, dentro da sociedade estadunidense e suas dinâmicas de poder – são questionados por dois romances do século XX, que voltaram às prateleiras no Brasil. A Companhia das Letras reedita Palmeiras selvagens (1939), de William Faulkner, autor nascido no sul dos Estados Unidos, no estado do Mississippi. O livro tem tradução de Newton Goldman e Rodrigo Lacerda. A leste do Éden (1952), do californiano John Steinbeck, sai pela Record, traduzido por Roberto Muggiati.

Em Palmeiras selvagens, William Faulkner entrelaça duas histórias. A primeira, que dá título ao romance, é centrada no casal Harry e Charlotte. Os dois abandonam o projeto de vida burguês para viver um amor estrangulado pela falta de dinheiro e, em certa medida, clandestino – uma vez que Charlotte é casada. A segunda saga, “O velho”, faz referência à grande enchente do Mississipi em 1927. O personagem central, detento em uma penitenciária do estado, recebe a missão de salvar uma mulher grávida, ilhada em um local de difícil acesso.

A leste do Éden pode ser interpretado como uma releitura do livro de Gênesis. A história de duas famílias, os Hamilton e os Trask, é contada por um narrador que investiga a oscilação humana entre o bem e o mal, além da busca por amor. Assim, a queda de Adão e Eva e a rivalidade entre Caim e Abel são temas repetidos pelas personagens de Steinbeck. Localizado no vale do Salinas, na Califórnia, o livro ilustra a passagem dos Estados Unidos do século XIX para o século XX.

Os Estados Unidos da América, a terra da liberdade. Essa imagem confunde-se com a própria ideia de nação. A perspectiva é entoada até no hino “The Star-Spangled Banner” – “A Bandeira Estrelada”, em referência ao maior símbolo do país –, no qual os Estados Unidos são “A terra dos livres e o lar dos bravos”.

O “Sonho Americano” ultrapassa a esfera econômica, embora seja quase impossível desassociar os Estados Unidos da expansão capitalista, uma fantasia burguesa tornada realidade. A América, território que se sintetiza pela alcunha de “Novo Mundo”, define-se, em um primeiro momento, como um contraponto ao Velho Continente – o de sua antiga metrópole.

A Independência dos Estados Unidos, em 1776, foi a primeira experiência de emancipação de uma colônia. Pouco mais de uma década depois, em 1789, ela impactaria na Revolução Francesa, espécie de reforma do Velho Mundo, fundada sob as ideias iluministas. Liberdade, igualdade e fraternidade. O lema revolucionário define o ethos estadunidense, uma imagem criada e propagada dentro do país. Surge assim um mito: a maior democracia do mundo, localizada nas Américas.

Em 1831, um francês chega em terras estadunidenses. Trata-se de Alexis de Tocqueville, autor de Democracy in America (1835). O pensador político foi enviado para estudar o sistema prisional norte-americano, mas acabou expandindo seus estudos, concentrando-se na democracia. Para Tocqueville, os Estados Unidos eram o protótipo de uma ordem democrática igualitária emergente, sem aristocracia e governada pelo governo da maioria. Em sua visão, a ordem norte-americana encorajava o individualismo — enquanto se mantinha por meio da influência da religião, opinião pública e associações voluntárias.

Tocqueville pintou um retrato do país. Os traços observados por ele perpetuaram-se durante todo o século XX, impactando até os dias de hoje. Historiadores, sociólogos e filósofos, entre outros, têm se debruçado sobre o mito da América. Mas destacamos aqui os escritores, uma classe cuja principal matéria é a ficção.

A literatura é uma poderosa lupa para desvelar a realidade social. Autores estadunidenses, desde o início da literatura nacional, emprestaram sua minuciosa visão a um propósito: tornar tangíveis as frestas do Sonho Americano. William Faulkner e John Steinbeck não são exceção.

Ambos foram consagrados pelo Nobel de Literatura – Faulkner em 1949 e Steinbeck em 1962. É preciso observar que dois escritores fazem parte de um cânone masculino e branco, em detrimento de autoras mulheres e autores afro-americanos, por exemplo. Para ilustrar a situação, o Nobel só viria a premiar uma escritora negra, a também estadunidense Toni Morrison, em 1993. Ela permanece até hoje a única mulher negra a ser agraciada pelo prêmio.

Contudo, Faulkner e Steinbeck não se furtaram de retratar, em suas obras, experiências díspares – ou, melhor dizendo, um outro lado do Sonho Americano. Entre 1939 e 1952, quando Faulkner e Steinbeck lançam, respectivamente, Palmeiras selvagens e A leste do Éden, os Estados já contavam com duas guerras mundiais – uma ainda em curso quando o autor sulista publica o seu romance – e se debatiam com os rastros da Grande Depressão, com o crash da Bolsa em 1929.

Por outro lado, já não se tratava de uma nação às margens dos interesses mundiais, mas de um país que caminhava para ser a maior potência do globo, dando uma face ao capitalismo do século XX. A partir dessas duas imagens, aparentemente dissonantes, Faulkner e Steinbeck traçam retratos dos Estados Unidos em suas ficções. Muitas vezes, o ponto de vista é o dos esquecidos – e até mesmo derrotados – pelo Sonho Americano

A leste do Éden e Palmeiras selvagens são duas obras de meados do século XX que ressoam nos tempos de hoje, uma prova da vitalidade literária de seus autores. Sondando criticamente as fronteiras possíveis da(s) liberdade(s), eles transfiguram impasses sociais que parecem recém-saídos dos debates de nosso milênio. Faulkner e Steinbeck olham, por exemplo, para as falhas do sistema prisional e para os direitos reprodutivos – em especial, um tratamento moralizante do aborto, baseado em leis arbitrárias.

Nas duas narrativas, o capital é colocado no centro. Eles olham com desconfiança para o desenvolvimento estadunidense, captando oscilações no dito “progresso”. Para o californiano, a promessa de ascensão no século XIX, a partir da ideia de uma “terra de prosperidade” é colocada em xeque com o fin de siècle e a Primeira Guerra Mundial. Faulkner também é pessimista quanto ao novo século, marcado pelo conflito de proporções globais e a crise econômica, alastrada pela década de 1930.

Os dois escritores chegam a um ponto fundamental do imaginário estadunidense: o éthos bélico. Eles retratam as diversas formas pelas quais a violência se manifesta; em especial, contra aqueles que desviam do corpo social uno e homogêneo. Não parece haver espaço para a alteridade nesse contexto, o que destaca a figura de imigrantes vindos de países marginalizados e a expressão da xenofobia.

As obras têm muito a ressoar na periferia do capitalismo. Brasil e Estados Unidos são duas jovens nações que sofreram com o colonialismo. No século XX, a sociedade brasileira também passou por um processo questionável de modernização e sofreu os impactos da Crise de 1929, a convulsão política da Revolução 1930 e sucessivos governos autoritários. Além disso, é difícil ignorar que o racismo ainda assombra os dois países.

Em seus melhores momentos, a literatura estadunidense reflete sobre o isolamento. Em especial, daqueles cujas vivências rompem com o Sonho Americano. O historiador Lawrence Levine aponta uma grande questão do imaginário norte-americano, ainda mais central após a Grande Guerra de 1914:

“O paradoxo central da história americana […] tem sido uma crença no progresso, combinada com o medo de mudanças; um desejo pelo futuro inevitável combinado com a saudade do passado irrecuperável; uma crença profundamente enraizada no destino revelado para a América e a assombrosa convicção de que a nação está em constante estado de declínio.”

Faulkner e Steinbeck encarnam esses paradoxos. Em termos simplistas, os dois autores são ligados ao novo realismo estadunidense da década de 1930 – e até mesmo a um tipo de naturalismo, ou seja, a crença de que o indivíduo é determinado pelo ambiente. O ponto central desses autores seria, assim, a crítica social.

Palmeiras selvagens e A leste do Éden guardam uma proximidade peculiar. São livros que não representam o melhor da produção de seus autores. Steinbeck discordaria. Para ele, o romance de 1952 é o seu feito artístico. Embora mais ambicioso, os críticos tendem a preferir sua escrita anterior, elegendo As vinhas da ira (1939), romance símbolo da Grande Depressão.

Palmeiras selvagens é um romance discreto entre os seus pares. É quase incontestável que a melhor escrita de Faulkner começa em 1929, com O som e a fúria, centrado na queda das velhas oligarquias do Sul. Em 1936, ele publicaria Absalão! Absalão!, a trajetória de um self-made man que atravessa a Guerra Civil e o período da Reconstrução.

Enquanto agonizo e Luz em agosto antecipam Palmeiras selvagens, uma vez que olham para as “pequenas vidas”. O último, a partir da figura trágica de Joe Christmas, questiona o racismo sulista e coloca a racialidade como um construto social excludente, ao passo que a saga dos Bundren para enterrar a matriarca em Enquanto agonizo traça um retrato melancólico da depressão.

Em entrevista a Paris Review, Faulkner afirma ter unido as duas narrativas de Palmeiras selvagens porque, juntas, elas criam imagens contrapontísticas. Curiosamente, ambas culminam em prisões.

Em 1927, o condenado de “O velho” tem uma década acrescentada à sua pena – embora tenha retornado com a mulher, o bebê e o barco em segurança. Dessa forma, ele ainda está lá quando Harry é preso pela morte de Charlotte, após operar um aborto malsucedido.

A leste do Éden atravessa os séculos XIX e XX, simbolizando tanto a crença no progresso dos novos tempos como a desesperança do fin de siècle. As ilusões perdidas estão na mira dos dois autores. Afinal, o novo século foi inaugurado pela Grande Guerra, na qual o pouco valor da vida humana tornou-se claro. “Sempre há muita carne. Eles descobriram isso há vinte anos, preservando nações e justificando lemas”, pensa Harry em Palmeiras selvagens. O narrador de A leste do Éden conta: “A nação caminhou, sem perceber, para a guerra, assustada e ao mesmo tempo atraída. As pessoas não sentiam a emoção vibrante da guerra há quase sessenta anos”.

Do mesmo modo, a Grande Depressão abalou a crença na prosperidade econômica. O médico alerta Harry, quando ele chega à residência: “Mas já não há prédio algum, expansão ou progresso por aqui. Isso acabou nove anos atrás.”.

O espírito bélico da sociedade estadunidense é examinado, especialmente, por Steinbeck. Cyrus, o primeiro Trask que conhecemos, forja uma identidade baseada nas guerras, com fábulas sobre batalhas da Secessão em que nunca esteve. Na Primeira Guerra, o vale do Salinas reconhece a vocação para a luta. Para eles, os Estados Unidos eram a mais forte nação do globo.

Os dois autores olham para sistemas penitenciários rudimentares. O protagonista de “O velho” está em uma “plantação de algodão cuidada por condenados sob as espingardas e as carabinas dos guardas”. Em A leste do Éden, Adan Trask é retido por “vagabundagem” – ser um homem errante ou solitário. Ele é julgado vadio e colocado num grupo de trabalhos forçados, no qual era algemado pelo tornozelo, preso a uma corrente e vigiado por homens armados.

Steinbeck e Faulkner enfrentam o mito da prosperidade estadunidense, que atraiu tantos imigrantes na primeira metade do século XX. Na prática, muitas vezes, a imigração era o fim do American Dream. Lee, um dos personagens de Steinbeck, oferece uma reflexão do imigrante como um construto social – o outro, de fora. Além dos chineses, aqueles vindos de outros países, então marginalizados – como os que trabalham na mina de Utah em Palmeiras selvagens, onde Harry e Charlotte buscam refúgio –, chegam atrasados ao progresso. As sobras são a pobreza e o subemprego.

Em sua temporada no exército, Adam Trask combate povos indígenas em nome do “desenvolvimento” do país. Apenas essa imagem é suficiente para traçar uma aproximação entre Brasil e Estados Unidos. Compartilhamos um conservadorismo arraigado, permeado pelo poder patriarcal e pelo racismo. As obras de Steinbeck e Faulkner podem dizer muito sobre uma modernidade complexa – até mesmo controversa e embaraçosa – e suas consequências, bem conhecidas pelos brasileiros.

Nas duas histórias de Palmeiras selvagens, as personagens saem de um confinamento inicial. Para Harry e Charlotte, este é o estilo de vida burguês; para o condenado, a prisão concreta. Eles passam, então, para uma liberdade insustentável, seguida por um novo confinamento. Dessa vez, definitivo. Em A leste do Éden, as personas criadas por Steinbeck estão embrenhadas em uma teia entre o Bem e o Mal, cabe a elas a decisão – Timshel, tu poderás. Da leitura das duas obras, o que é reluz é o olhar minucioso dos autores para os limites da liberdade.

Falta uma coletividade plena, que acaba confundida com o fenômeno das massas. O indivíduo é fragmentado, sem espaço para a alteridade – a valorização das diferenças – ou uma comunhão efetiva. Como escreve a autora americana Carson McCullers, essa é uma falha do amor, a ponte que leva do “eu” para o “nós”. Para McCullers, essa ausência é a gênese da xenofobia, tão criticada por Faulkner e Steinbeck.

As palavras de John Steinbeck abriram este artigo. Agora, encerramos com Faulkner e uma reflexão sobre a memória. Esses dois grandes autores dos Estados Unidos usam suas obras como memorial. Por meio da literatura, eles lembram os estadunidenses de suas angústias nacionais, ressoando o último pensamento de Harry em Palmeiras selvagens: “entre a dor e o nada, escolherei a dor”.

 

Giovana Proença Gonçalves é pesquisadora na área de Teoria Literária e Literatura Comparada na FFLCH-USP, com ênfase em autores estadunidenses. Escreve sobre livros. Tem textos publicados nas revistas Quatro cinco um, Cult e CartaCapital e nos jornais Rascunho, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo.

Obras citadas

LEVINE apud. GRAY, Richard. “The Social and Historical Context”. The Literature of Memory: Modern Writers of the American South. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1977.

McCULLERS, Carson. “Solidão… um mal norte-americano”. In: Coração Hipotecado. Osasco: Novo Século, 2010.

TOCQUEVILLE, Alexis. Democracy in America. London: Penguin, 2003.

Fonte:  https://diplomatique.org.br/os-limites-da-liberdade/

Adam Curtis: “nós criamos a sociedade, portanto podemos fazê-lo novament

 Por

Imagens do filme “HyperNormalisation”, de Adam Curtis (Fotos: cortesia do diretor/BBC)

Em sua conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil, Adam Curtis fala sobre o papel da arte na sociedade, o poder revolucionário do jornalismo e como podemos construir uma nova sociedade


Nos últimos trinta anos, um diretor de documentário se destacou entre seus colegas ao criar uma forma única e característica para seus filmes. Com as imagens do arquivo da BBC, uma mistura de música pop e experimental e um voice-over onipresente narrando histórias ambiciosas, como a ascensão da psicanálise e das relações públicas servindo de armas políticas, Adam Curtis conquistou fãs ao redor do mundo, mesmo que seu trabalho só esteja oficialmente disponível no Reino Unido.

Jornalista da BBC, o órgão público de comunicação do Reino Unido, Curtis lança seus documentários desde o início dos anos 1990 e, com a ascensão da internet, suas reportagens são rapidamente legendadas e republicadas no YouTube para seus fãs não britânicos. Entre os trabalhos mais famosos do cineasta de 68 anos estão HyperNormalisation, filme de 2016 que trata da ascensão de um mundo falso criado pela política e pelo mercado financeiro desde 1970, e TraumaZone, sua série mais recente que mostra a queda da União Soviética.

Suas reportagens não são simples investigações ou narrações de episódios históricos. Curtis mergulha nas emoções, nas consequências ignoradas e nas versões não oficias da história, que desafiam como ela tem sido escrita e contada pelos vencedores. O documentarista tem admiradores e detratores tanto na esquerda quanto na direita, e seu trabalho camaleônico bebe de influências diversas como o falecido antropólogo anarquista britânico David Graeber e o filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger.

Em sua conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil, Adam Curtis fala sobre o papel da arte na sociedade, o poder revolucionário do jornalismo e como podemos construir uma nova sociedade. Confira:

Você prefere ser chamado de jornalista, e não de cineasta. Por quê? Qual a diferença?

Eu não vejo problema em ser chamado de cineasta. Meu problema é com a palavra “artista”. Essa eu realmente não gosto. Não sei se isso também é verdade no seu país, mas aqui [no Reino Unido], há uma fetichização do artista acima de praticamente qualquer outra coisa em certos setores da burguesia liberal. Eu acho isso um pouco arrogante, porque eu considero o jornalismo muito mais importante e influente historicamente do que a arte.

A arte é muito, muito boa em descrever o que é o mundo em um momento particular, às vezes até de forma instintiva, enquanto o jornalismo é sobre realmente mudar o mundo. Você sai e você reporta as coisas que são muito ruins para as pessoas. As pessoas ficam raivosas, põem pressão nos legisladores e, então, os jornalistas realizaram seu papel em mudar o mundo. Até certo ponto, isso não acontece mais hoje em dia, mas é por isso que eu considero o jornalismo mais importante que a arte.

Eu roubo da arte, roubo inúmeras ideias da arte, mas eu as coloco a serviço de tentar reportar sobre o mundo para o povo, o que eu, pessoalmente, considero mais importante.

Eu não sei se é verdade onde vocês estão, mas há uma certa obsessão com autoexpressão entre certos setores das classes médias liberais e de esquerda. Eu acho que isso está relacionado com o fato de que eles foram marginalizados do poder na década de 1980, quando os governos radicais de direita entraram em cena. Em resposta a isso, eles disseram “oh, nós somos mais importantes. Nós podemos nos expressar”. Se você olhar para a história, no começo, eles realmente usaram a sua arte para criticar a política. Mas, lá pelo meio dos anos 1990, a política havia desaparecido e tudo só virou autoexpressão.

É essa ideia de que se expressar é mais valioso do que qualquer outra coisa no mundo todo. Eu não sei… Uma das razões pelas quais eu odeio ser chamado de artista é porque eu acho que toda essa ideia de autoexpressão não é mais radical. Na verdade, é a coisa mais conformista que você pode fazer hoje em dia. Se você faz algo extraordinário e não conta a ninguém sobre, as pessoas não entendem porque você faria isso. Isso é parte de uma certa cegueira do nosso tempo: as pessoas sentem que estão sendo, de certa maneira, independentes e radicais, mas, na verdade, elas estão sendo exatamente como todos os outros que também estão sendo independentes e radicais, e eu não sei como sair dessa armadilha.

Nesse mundo de armadilha, a realidade muitas vezes não é o que parece. Qual o papel do jornalismo numa situação como essa? 

O jornalismo sempre foi, de certo modo, um contador de verdade, e eu acho que ele se perdeu um pouco nessa ideia do que é verdadeiro ou falso. Jornalismo sempre foi sobre pegar fatos e contar histórias sobre o mundo, mas há uma ideia quase religiosa e levemente inocente de que o trabalho é só encontrar os fatos e colocá-los à frente das pessoas.

O problema com o jornalismo, no momento, é que ele não encontrou uma maneira de contar histórias que se conectem com as pessoas. Eu não sei se isso é verdade no Brasil, mas a minha organização, a BBC, ainda tem uma obsessão pela ideia de jornalismo investigativo, onde um repórter vai, encontra algo ruim, como um ministro corrupto no governo, e escreve essas coisas esperando choque, mas nada acontece. O povo sabe que nós temos um governo incrivelmente corrupto, mas a reação às reportagens chocantes dos jornalistas é “sim, a gente sabe, mas a gente também sabe que, não importa o que você faça, nada vai acontecer”.

Alguma coisa está quebrada, e os jornalistas ainda não encontraram uma forma de narração que surpreenda ou inspire as pessoas. Eles contam a mesma velha história, que eu chamo de oh-céus-ismo. Eles só falam “oh céus, isso é terrível”, e todo mundo responde “sim, é terrível”, e o mundo continua como está.

Eu acho que todo mundo se sente sem poder na nossa sociedade, e o jornalismo um dia já foi sobre empoderar as pessoas, porque ele dava a elas informação que elas poderiam usar para pressionar os políticos. As pessoas se afastam do jornalismo porque elas acham que não faz sentido, já que ele só nos conta o que já sabemos.

Eu fico desconfiado de quem fala que tudo se resume a fake news, porque eu acho que vai além disso. O jornalismo não está configurando o mundo e contando histórias que se conectam às pessoas e à forma que elas estão experienciando o mundo. Mas ele vai fazer isso. Os jornalistas vão sobreviver.

Voltando para a pergunta sobre arte. Os artistas fingem que são radicais mas, no decorrer da história do mundo, até onde eu sei, os artistas, por causa de seus privilégios, puderam entrar nas salas dos ricos e poderosos, e retrataram eles muito bem, e é isso que sempre fizeram. Eu estou sendo um pouco provocativo, mas eu não acho que arte radical tenha, algum dia, transformado o mundo. Quando os pintores costumavam ir e pintar o estilo de vida dos ricos e famosos, de uma forma extraordinária isso deu ao povo uma ideia de como os poderosos eram, o que é muito importante, mas não é radical.

Você não acha que há alguma exceção para essa regra de que os artistas não mais podem mudar o mundo?

Bom, me diga quando os artistas mudaram o mundo. Se você olha para a história das grandes revoluções, os artistas sempre chegam atrasados para o jogo. A Revolução Russa não aconteceu por causa dos artistas. Eles apareceram no começo da década de 1920 e começaram a fazer arte muito boa, ótima em expressar as ideias do governo revolucionário e da sociedade revolucionária, mas não foi esse o motor que mudou o mundo. No fim da década de 1920 e no começo da década de 1930, na Alemanha, tinham artistas fazendo colagens radicais que mostravam quão péssimos os nazistas eram. Bom, eles realmente pararam os nazistas? 

O que eu acho que há de radical na arte é que, de alguma maneira, ela percebe instintivamente o que o mundo se tornou, e encontra formas muito imaginativas de contar a mim e a você como o mundo é. A arte pode capturar o mundo, mas não mudá-lo.

 

No livro Realismo capitalista, Mark Fisher escreve que “no capitalismo, tudo o que é sólido se desmancha nas relações públicas”. Parece que você ecoa essa mensagem em HyperNormalisation. Será que as relações públicas são o grande contraponto, o inimigo do jornalismo hoje em dia?

Não, nós [jornalistas] somos nossos próprios piores inimigos. Eu não acredito que o inimigo esteja nas coisas sendo manipuladas pelas relações públicas ou algo assim. 

Eu e o Mark Fisher éramos grandes amigos, na verdade. Costumávamos fazer palestras juntos. Toda época tem um realismo, e com isso eu não quero dizer o que é real, mas sim realismo como uma maneira de descrever o mundo que realmente se conecta com a forma como as pessoas estão experienciando a realidade naquele momento histórico.

Quando Charles Dickens e [Honoré de] Balzac estavam escrevendo seus romances, aquilo parecia real. O que ninguém está fazendo hoje é produzir um tipo de contação de história que se conecte com a forma como as pessoas se sentem. As pessoas mais próximas de descrever a falta de poder do nosso tempo são os romancistas millennials, como a Sally Rooney, porque o que ela faz é descrever um sentimento em todos seus personagens de querer mudar o mundo, mas nunca fazer nada sobre isso. Então, eles vagueiam por essa neblina de falar a linguagem de quem quer mudar o mundo, mas sabendo que nunca vão realmente fazê-lo. Isso é o mais próximo que chegamos de um realismo da nossa época.

Os jornalistas contam com formas velhas de contar histórias, e é nossa culpa que não conseguimos explicar o mundo e esse sentimento de falta de poder. Não estamos sozinhos, mas nós temos um grande papel em não assumir a responsabilidade e encontrar uma forma imaginativa de fazer isso. Há momentos em que o jornalismo muda, e eu acho que nós estamos provavelmente esperando por um desses.

Você tem um estilo de documentário muito único, que as pessoas reconhecem. De onde veio a ideia de trabalhar com os arquivos de vídeo da BBC e usar esses fragmentos audiovisuais?

A resposta a essa pergunta é que eu não faço ideia. Só foi o jeito que eu decidi que poderia fazer isso. Quando eu entrei na BBC, os jornalistas mais velhos estavam satisfeitos consigo mesmos, e eu estava tão entediado pelo jeito que eles faziam as coisas, então eu só comecei a brincar. Eu tinha sido influenciado muito mais pela literatura do que pela arte. Quando eu era criança, meu pai, que é um esquerdista meio sem graça, me deu um livro do escritor americano John dos Passos. E isso foi muito antes de quando eu deveria ter lido aquilo, eu devia ter uns dez anos. No livro, ele faz essas colagens de coisas, experiência crua e manchetes de jornal para contar histórias. Eu acho que aquele livro teve um grande efeito em mim, porque me fez perceber que você poderia criar uma narrativa e ter um conjunto de coisas montado em volta dela.

Toda geração tem uma nova sensibilidade, e, na minha, nós estávamos mais confortáveis em brincar com a mídia. Estávamos começando a perceber que a cultura era essa coisa com a qual poderíamos brincar. Eu sou da geração do sampling

Eu entrei com aquilo que era chamado de edição não linear. Eu sei que isso soa chato, mas a tecnologia tem um papel importante nisso. Pela primeira vez, você poderia pegar imagens e só colocá-las sem ter que mudar toda a estrutura do seu filme. Portanto, você podia brincar.

E a ideia de usar música pop e eletrônica, de onde veio? Isso é algo muito distinto no seu trabalho. Sempre dizemos que o jornalismo deveria ser imparcial e objetivo, mas o jeito que você usa as montagens com as canções fala diretamente à emoção das pessoas, é bem subjetivo.

Quando comecei a fazer jornalismo, algo que eu percebi foi que essa ideia de que você poderia ser objetivo era bobagem. Os jornalistas mais velhos não eram objetivos de forma alguma, mas o que eles estavam fazendo era disfarçar isso. Então, o que decidi fazer foi mostrar que eu não estava manipulando, eu estava criando um ambiente para tentar dizer às pessoas: “olha, você já pensou em ver o mundo dessa maneira?” Você pode olhar para o mundo de várias formas diferentes. E muitas vezes as formas que nos ensinaram são um pouco limitadas ou possivelmente erradas.

Eu pensei que, de um jeito engraçado, estava sendo mais verdadeiro. Acho que as pessoas da minha geração apreciaram isso. Além disso, os documentários sempre usaram música, mas a música era péssima. Era terrível.

Como com os saltos que faço na narrativa, essa é minha forma de construção, porque acho que é uma maneira mais honesta de relatar o mundo do que usar a pretensão de que você está sendo completamente objetivo. Estou apenas provocando um pouco para tentar dizer às pessoas, “você já pensou nisso?”

Nos seus filmes, os voice-overs servem como uma linha que guia o público aonde você quer chegar. Por que abandonar o recurso em TraumaZone, sua série mais recente? 

Duas razões. Primeiro, eu tinha um material extraordinário, rushes que foram filmados por equipes de notícias da BBC ao longo de trinta anos na Rússia. Eu achei que era simplesmente errado colocar a minha narração por cima, por que não apenas deixar o vídeo correr?

Além disso, acho que os tempos estão mudando. Acho que é hora de recuar e apenas permitir que as pessoas experienciem as coisas. Jornalistas pomposos falam sobre como ninguém mais tem capacidade de concentração nos dias de hoje, mas tudo o que você tem que fazer é criar um mundo onde as pessoas se percam, e elas ficam fascinadas. Eu simplesmente pensei que estava construindo um mundo, então não deveria comentar sobre ele, deveria apenas deixar que ele fosse.

Na minha edição, é claro que eu estou comentando sobre esse mundo. Acho que o que percebi muito cedo é que você precisa realmente colocar sua própria sensibilidade em um filme: a música que você gosta, as atitudes que você pensa. Não crenças profundas, apenas a maneira como você pensa sobre um assunto e a maneira como você o dramatiza.

Imagens da série “TraumaZone”, de Adam Curtis (Fotos: cortesia do diretor/BBC)

Em Can’t Get You Out Of My Head, você apresenta a história contemporânea por meio de teorias de conspiração que moveram as pessoas. E quando você e seu trabalho são chamados de teorias da conspiração por críticos?

Eu diria que nunca, jamais levantei uma teoria da conspiração. Eu as reportei. O que sempre tentei fazer, e acho que é uma função muito boa do jornalismo, é dizer que a maneira como vemos o mundo tem se tornado cada vez mais estreita. Eu só quero fazer filmes que digam a você: “já pensou em ver o mundo a partir deste ponto de vista?” É como um ensaio provocativo.

No meu país, nos últimos vinte ou trinta anos, nós tivemos dois partidos políticos principais que são essencialmente idênticos. Eles entram em conflito sobre coisas pequenas, mas, essencialmente, a faixa do que é considerado normal na política e na sociedade tornou-se incrivelmente estreita. Em resposta a isso, quando pessoas como eu saem e dizem, “já pensaram em olhar para isso dessa maneira?”, as pessoas dizem, “oh, isso é uma conspiração”. Então, a palavra conspiração começou a mudar de significado. O que ela significa muitas vezes é que você está discutindo coisas fora dos termos da faixa acordada.

Ser provocativo e desafiar uma sociedade que tem uma visão muito estreita da política atrai críticas e conflitos, mas isso faz parte do processo. Às vezes, penso que essa estreiteza levou a um tipo de jornalismo muito desidratado e, se você o desafia, todos ficam zangados. Não sei se é verdade no jornalismo em seu país, mas os jornalistas estão muito satisfeitos consigo mesmos. Sentimos que sabemos mais sobre o mundo do que todo mundo, mas talvez isso não seja verdade.

 

Quando você fala sobre o estreitamento da visão política, me lembro da frase com a qual você abre e fecha a série Can’t Get You Out Of My Head, do antropólogo anarquista David Graeber, que afirma que “a verdade oculta do mundo é que ele é algo que fazemos, e que poderíamos facilmente fazer de um modo diferente”. Por que estamos tão presos em fazer as coisas do mesmo jeito?

Eu não sei! Acho que essa é a questão chave do nosso tempo, por que estamos tão estagnados. Tenho essa teoria latente de que, embora muitas coisas tenham acontecido nos últimos trinta anos, a sociedade talvez não tenha realmente mudado. Estou falando da macrosociedade, a estrutura de poder não mudou tanto assim. Tome como exemplo  o governo Trump, de 2016 a 2020. A histeria foi extraordinária nos Estados Unidos, mas, se você é um historiador implacável da era Trump, verá que ele não fez nada. Ele reduziu os impostos para os ricos, mas todo republicano faz isso. Ele retirou as tropas da Síria, o que acho que é provavelmente uma coisa boa. Ele não fez mais nada, essa sensação de que a sociedade estava indo a algum lugar simplesmente parou.

Tenho uma teoria de que nos tornamos viciados em apocalipse. Eu estive querendo fazer um filme chamado Apocalipse Now and Then (Apocalipse Agora e Depois). Desde 2001, ou talvez um pouco antes, com a virada do ano 2000, nos tornamos viciados nessa ideia de que haverá uma catástrofe. Os jornalistas adoram isso, porque é algo para gerar histeria.

É como com a Ucrânia hoje. Acho que há um argumento muito forte de que estamos loucos por estar enviando todas essas armas para a Ucrânia para que jovens sejam mortos repetidamente, e deveria haver um movimento pela paz pedindo algum tipo de cessar-fogo, mas isso não está acontecendo. Você tem esse mundo estático onde apenas enviamos armas para lá e ninguém discute como resolver isso.

Não estou tentando ser bruto demais, mas é quase como se nos deleitássemos na histeria para evitar o terrível fato de que na verdade não sabemos como mudar o mundo para melhor. Não sabemos. Então, o que fazemos é apreciar os apocalipses porque nos dá uma desculpa para evitar enfrentar o terrível fato de que as pessoas vêm e vão com ideias estranhas, mas nada nunca acontece.

No Reino Unido, tivemos quatro primeiros-ministros dentro de uma administração, que fazem coisas estranhas, mas nada nunca acontece. A única coisa que acontece é que a distribuição da riqueza fica mais extrema e as pessoas fora da faixa de normalidade ficam mais zangadas.

Há uma mulher fantástica que encontrei no TikTok outro dia, dizendo “estou cansada de ter uma opinião sobre o mundo, estou cansada de ter teorias sobre o mundo, estou simplesmente cansada de tudo isso. Vou lhe dizer, para 2022, tenho um slogan: sem pensamentos, apenas vibes” e pensei “é onde estamos agora”. As pessoas desistiram dessa ideia de que os pensamentos podem realmente ter um efeito, e elas sabem que nós sabemos que elas sabem, o que leva a um ciclo de ódio total.

A maioria dos jornalistas agora odeia pessoas comuns porque não as entendem, mas nota-se uma coisa realmente interessante sobre Trump – e isso também foi verdade sobre o Brexit: os jornalistas nunca se perguntam por que tantas pessoas continuam o apoiando. Mesmo ele sendo um criminoso condenado, quase 50% dos americanos ainda o apoiam.

 

Você já falou que lê e admira o trabalho do filósofo brasileiro Roberto Mangabeira Unger. Por que o pensamento dele te atrai?

Porque ele está tentando lidar com essas áreas, sobre como mudar alguma coisa. Sou jornalista, então leio tudo, e sou intrigado por qualquer um. É por isso que gosto de David Graeber, por exemplo, que realmente pensa fora do ciclo de desgraça, que é o verdadeiro problema da nossa era. Todos esperam o apocalipse, o que congela a imaginação. O que gosto é de qualquer um que tente imaginar alternativas, que realmente imagine que você pode imaginar.

O movimento ambientalista, em algum momento dos anos 1990, foi capturado por tecnocratas que simplesmente disseram: “você só precisa alterar o sistema técnico para que a temperatura caia, e a sociedade pode ficar como está”. Bem, isso não funcionou, e o que aconteceu com os ambientalista é que eles pensam “meu Deus, não está funcionando, isso significa que todos vamos morrer”, em vez de realmente dizer “a razão é porque você tem uma sociedade que força as pessoas a dirigirem carros para ir trabalhar e toda uma série de ações que levam ao problema”. Então, a resposta é mudar a sociedade. Mas ninguém nunca faz isso, porque todos se tornaram tão desligados da ideia de que você pode mudar as coisas. Nós criamos a sociedade, portanto podemos fazê-lo novamente, não é um dado inevitável, e é por isso que gosto de qualquer um que tente fazer isso.

Apenas acho que é óbvio que construímos essa coisa, então podemos reconstruí-la, mas o que aconteceu com minha classe [a jornalística], e acho que provavelmente é verdade em seu país também, é que eles se tornaram totalmente deprimidos e temerosos do futuro, e sentem que é muito perigoso tentar fazer alguma coisa. Apenas acho que essa é a visão cínica. Quero dizer, se você vai mudar o mundo, precisa conversar com pessoas que votaram em Trump, e precisa conversar com pessoas que votaram pelo Brexit.

Acho que a imaginação do jornalismo está congelada. Você me perguntou sobre música, e estou tentando fazer jornalismo de forma imaginativa porque acho que é assim que você se conecta com as pessoas. Você está mostrando a elas uma maneira imaginativa de ver o mundo, e se você acertar, as pessoas realmente gostam.

Nos anos 1980, foram feitos vários filmes trash que eram realmente bastante divertidos, de pessoas como John Carpenter, que frequentemente eram ambientados nas áreas urbanas, onde tudo estava se deteriorando, as fábricas estavam fechadas, mas estavam cheias de mutantes e pessoas estranhas com motosserras e coisas assim, e você entrava lá e tinha batalhas extraordinárias. Acho que a internet vai se tornar um pouco assim, será como um território mutante que você pode entrar e se divertir muito – mas toda a reportagem sobre o mundo se moverá para outro lugar, e acho que isso pode ser uma reinvenção do jornalismo. A internet permanecerá, será uma coisa boa e útil, mas, agora, ela é apenas chata, previsível.

Acho que tentei sugerir gentilmente isso em Hypernormalisation: se você tem um grande sistema como a Guerra Fria, no qual você tem as duas grandes estruturas de poder do mundo congeladas e equilibradas, juntas, por sessenta anos, quando ela desmorona, ambos os lados terão que desmoronar. O que talvez estejamos vivenciando agora pode ser equivalente ao que os russos passaram na década de 1990. Você tem um sistema econômico muito corrupto que está sendo saqueado por figuras oligárquicas.

No que você está trabalhando atualmente? 

Eu quero fazer um TraumaZone sobre o Reino Unido. Quero que seja uma espécie de comédia, porque tem tanta coisa engraçada acontecendo por aqui e porque gosto da ideia de fazer com que as pessoas vejam as coisas com um olhar mais fresco. Quero fazer uma grande épica que começa mais ou menos com Margaret Thatcher assumindo o poder. 

Fonte: https://diplomatique.org.br/adam-curtis-entrevista/

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Evangélicos não são bloco único e caricatura do 'crente careta' é erro, diz jornalista

Reinaldo José Lopes São Carlos (SP)

mulher de cabelo loiro, encaracolado, veste preto

A escritora e jornalista Anna Virginia Balloussier, 
autora de 'O Púlpito' - Marcus Leoni/Divulgação

Anna Virginia Balloussier analisa no livro 'O Púlpito' as transformações e divergências entre igrejas nas últimas décadas

Não há nada de monolítico na ascensão das igrejas evangélicas brasileiras durante as últimas décadas. Apesar da popularidade e da influência de alguns pastores mais conhecidos, trata-se de um fenômeno complexo, altamente pulverizado e em constante transformação, mostra "O Púlpito", novo livro da jornalista Anna Virginia Balloussier.

Embora a repórter da Folha tenha se especializado na cobertura das relações entre o movimento evangélico e os bastidores da política há mais de dez anos, a obra dá igual peso aos aspectos sociais, comportamentais e até econômicos do crescimento dessa comunidade diversa.

Com isso, caem por terra alguns estereótipos, a começar pela "caricatura do crente careta e severo, avesso a qualquer coisa que não seja a graça divina", diz ela. Balloussier descreve as transformações no meio evangélico com bom humor e alguma dose de ironia, algo que, para a autora, é bastante comum entre os "crentes" de hoje.

"O que não pode é dar a entender que se está a rir deles, e não com eles", explica ela. "Como circulo há bastante tempo nas igrejas, posso me dar essa liberdade com pessoas mais próximas, que sei que não se incomodam, pelo contrário, são as primeiras a usar o humor para falar de si."

Essa combinação estranha, ao menos para quem está de fora, de intensa devoção ao texto bíblico, de um lado, e irreverência e flexibilidade, de outro, aparecem nos mais diversos aspectos da expansão evangélica.

Nesse cenário cabem desde a criação de produtos eróticos especialmente dedicados a apimentar o casamento (fielmente monogâmico, é claro) das "irmãs" até a disputa pelo filão das feiras de produtos religiosos, um mercado no qual há pessoas sedentas para consumir livros, moda e música pensados para a visão de mundo delas.

E acontece ainda a convergência, em diversos casos, da pregação cristã com a linguagem dos "coaches", eivada de ideias de autoajuda e busca de ascensão pessoal.

Tudo isso começa a fazer um pouco mais de sentido quando se consideram as transformações demográficas pelas quais a tradição evangélica passou conforme foi deixando de ser minoritária no Brasil, diz Balloussier.

"O perfil evangélico começou mais branco, porque era a religião dos imigrantes protestantes vindos da Europa e dos Estados Unidos. Mas a presença na população ainda era residual. Sobretudo depois do pentecostalismo, os evangélicos foram se tornando cada vez mais a cara da base brasileira", resume.

"Hoje a maioria nas igrejas é negra, feminina e vinda de classes baixas. A questão é entender por que essa religião se popularizou tanto nas periferias. Diria que tem muito a ver com os laços comunitários que fornece, e também com perspectivas de mobilidade social: com a ajuda dos irmãos, o fiel quer prosperar."

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O crescimento numérico foi acompanhado de um avanço concomitante na relação com a política e a mídia, vistas com reserva ou mesmo com repulsa quando os "crentes" eram poucos em meio a um mar de católicos. A atual associação dos líderes desse avanço com o bolsonarismo foi sendo construída em etapas, segundo ela.

"Essa liderança evangélica de projeção nacional, os ‘grandes nomes’ que a gente tanto vê na mídia e nas redes sociais, tinha um pendor mais fisiológico no passado, se podemos colocar assim", explica Balloussier. "Apoiavam o governante da vez argumentando que seria um dever bíblico orar e torcer por eles. Basta lembrar que, nos anos 2010, você tinha no retrato com o PT Silas Malafaia, Edir Macedo, Magno Malta, [Marco] Feliciano, para citar nomes que depois repudiaram Lula e companhia."

Mesmo dentro de um único grande "guarda-chuva" eclesial, o da Assembleia de Deus, a eleição de 2010 trouxe apoios pulverizados.

Naquele pleito, dos grandes subgrupos assembleianos, o Ministério Belém apoiou a candidatura presidencial de José Serra (PSDB), o Ministério Madureira se declarou favorável a Dilma Rousseff (PT) e o Santo Amaro endossou Marina Silva. É algo nada surpreendente no caso das igrejas evangélicas, que frequentemente não possuem nenhum tipo de autoridade central, mesmo tendo uma origem comum.

A convergência em favor do bolsonarismo, para a autora, foi um fenômeno multifatorial, favorecido pela ascensão das redes sociais e seu pendor pela polarização, a reação contra o fortalecimento dos movimentos identitários e a dificuldade da esquerda de dialogar com esse segmento do eleitorado. "Ou vem com tutela ou com ofensa. Aí fica fácil para o outro lado."

"Como bônus, destacaria não só a maior afinidade ideológica entre esses pastores e [Jair] Bolsonaro, mas um espaço inédito para eles em Brasília. Eram convidados para o Planalto, ocuparam cargos altos. Sentiram-se prestigiados para além da conveniência eleitoreira."