quarta-feira, 19 de novembro de 2008

POPULISMO MAGISTRAL

Roberto Romano

“A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. (...) A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt” (Folha de São Paulo, 11/11/2008). Desde a era Vargas, com Francisco Campos, autor de uma constituição imposta pelo ditador (Campos atuou ainda na redação dos atos institucionais), não tinha o povo brasileiro o pronunciamento de um juiz favorável ao jurista Carl Schmitt. Este, por sua vez, atualizou as teses de Donoso Cortés sobre a ditadura e contra a idéia liberal da Constituição. O magistrado se apresenta próximo da política (coerente com as teses de Schmitt) e longe da lei. Vejamos algumas premissas que permitem entender o alcance das teses avançadas por Schmitt, assumido pelo dr. De Sanctis. Aquelas teses reforçam o poder Executivo em prejuízo dos demais, o que só pode resultar numa ditadura explícita, visto que existe ditadura de fato no Brasil, basta referir as medidas provisórias.
Não por acaso, Schmitt se refere ao poder moderador brasileiro em O protetor da Constituição. Ali, ele defende que só o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do artigo 48 da Constituição de Weimar. Recordemos o artigo: “Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich deve tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda, se necessário, das forças armadas. Para este fim, ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, 153”. Segundo Schmitt, “nenhuma constituição sobre a Terra legalizou com tamanha facilidade um golpe de Estado quanto a de Weimar”. Ao fazer seu apelo ao Protetor da Constituição, ele nega que o Judiciário possa exercer aquele papel, porque Judiciário é idêntico a normas e age post factum na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, só o Reichspräsident pode ser movido constitucionalmente. Schmitt afasta o Judiciário e o Legislativo naqueles transes. Como afirma H. Kelsen, Schmitt reduz a Constituição de Weimar ao artigo 48. Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um Protetor da Constituição” e se os juízes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Schmitt retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional. Ele estabelece um vínculo direto entre o chefe do Estado e o povo, que no Füher encontra sua vontade e sua diretiva. Assim, se o povo é a Constituição, o presidente do Reich é a efetividade popular. O Parlamento com sua indecisão e partidarismos, o Judiciário com suas formalidades, estão afastados das horas de crise, os instantes em que vigora a exceção sobre a regra. E a exceção é o que determina o agir político.
O nosso poder moderador antes da República era vitalício e hereditário. A presidência limitada por quatro anos tenta pressionar o Legislativo para que este último faça ou aprove leis favoráveis ao seu programa. E surgem pressões sobre o Judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis. Longe de ser um avanço democrático, as teses de Schmitt jogariam o País, ainda mais, numa presidência imperial. A levarmos a sério a profissão de fé schmittiana, a crise atual do Estado brasileiro só teria uma solução com a neutralização do Judiciário e do Legislativo em proveito do Executivo. Ouvir a defesa dessa atitude em golpistas e conservadores é comum. Excepcional é lermos a semelhante tese na pena de um juiz. Estranho Brasil.

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