sábado, 20 de dezembro de 2008

Nascendo de novo numa era mortal

Aos 70 anos, Leonardo Boff ainda se inquieta
com caráter descuidado e egoísta da atualidade
Cristine Gerk e Marsílea Gombata
"O ser humano está descuidado e sem visão de totalidade." Ao completar 70 anos, Leonardo Boff se inquieta mais do que nunca com o rumo que o planeta segue no início deste século. Autor de mais de 60 livros, nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística, esse defensor dos direitos humanos de fama internacional diz se ver mais próximo de concluir seu processo de nascimento com o passar do tempo, diferentemente da maioria, que se sente mais perto da morte. Nesta entrevista ao Idéias, o professor da Uerj mostra suas impressões sobre a atualidade e alerta: "Não temos como ganhar a guerra que estamos travando contra a Terra".

O que falta para a humanidade conseguir orquestrar filosofia, ética e ecologia? Para qual direção estamos caminhando? ­
Para responder a esta questão devemos ir à raiz do problema, que reside no fato de que a humanidade perdeu o sentido de totalidade, o sentimento de que nós, seres humanos, pertencemos a um todo maior: primeiro à natureza, depois à Terra, por fim ao cosmos. Essa era a visão dominante na história da humanidade e ainda presente nos povos originários, como os indígenas. Estes se sentem filhos e filhas do Sol e da Lua, parte da natureza, em comunhão com as energias das águas, das montanhas, do fogo e de outros elementos naturais. Vivemos num mundo compartimentado, fruto da leitura científica moderna, nascida com Descartes, Galileu Galilei, Francis Bacon, Newton, entre outros. Eles separaram o que está sempre unido e matematizaram as relações com a natureza no afã de melhor dominá-la. Perdemos aquilo que as religiões sempre nos deram: o sentido da religação de tudo com tudo e com a Fonte de todos os seres. O oposto à religião hoje não é o ateísmo ou a arreligião, mas a falta de conexão com a realidade e a perda da capacidade de identificar o fio condutor que une e re-une todos os seres para formarem um cosmos e não um caos. Eis o efeito da razão instrumental-analítica que operou em nós uma espécie de lobotomia. Não sentimos mais as coisas, não captamos a mensagem que nos vem da luz, da noite, do céu estrelado, do olhar inocente da criança, da mão estendida do faminto, do olhar suplicante do ancião abandonado na rua. Para resgatar o sentido de totalidade, precisamos enriquecer a razão calculatória com a razão sensível e com a razão cordial, que constitui a dimensão mais profunda de nossa realidade humana e que nos faz sensíveis a valores e nos devolve a percepção do sagrado do mundo e do respeito a cada ser, especialmente ao ser humano. O excesso de razão produz a irracionalidade, que pode provocar o colapso da espécie e do projeto planetário humano.

Que tipos de cuidado o homem está deixando de ter? ­
Há uma carência generalizada de cuidado no mundo. Se partimos da concepção filosófica de que o cuidado é parte essencial do ser humano e mesmo da estruturação do universo (a calibragem sutil de todas as energias e elementos primordiais que permitiram que o mundo chegasse ao que hoje é), então estamos sofrendo um estado altamente desumanizado de relações em qualquer campo. Mais que tudo, não temos cuidado para com a vida em todas as suas formas.

Na verdade, não amamos mais a vida, pois a submetemos a tantos riscos, a manipulamos em função da acumulação e dos negócios nos mercados e ofendemos tão duramente sua dignidade intrínseca que nos tornamos cruéis e sem piedade. Temo que Gaia, a Terra entendida como um superorganismo vivo, se defenda de nós, eliminando-nos, como eliminamos uma célula cancerígena. Pois é isso que nos tornamos em relação a todas as demais espécies. Estamos em guerra declarada contra Gaia, atacando-a em todas as suas frentes. E não temos condições de ganhar esta guerra. Gaia poderá existir sem nós, como existiu durante quase toda a sua existência de 4,5 bilhões de anos.

Com quais olhos você vê o futuro da humanidade?
Com pessimismo ou otimismo? ­ - Sinto-me perplexo face às contradições da realidade, especialmente agora que estamos no coração de uma crise que atingiu os fundamentos do sistema e da cultura do capital. Gastamos de US$ 3 a 4 trilhões para salvar o sistema financeiro, especialmente os bancos, que nos enganaram, prometendo-nos ganhos que se mostraram agora ilusórios. E se gasta apenas alguns milhões, no máximo 2 a 3 bilhões para enfrentar o aquecimento global e salvar o planeta. Continuamos sob o domínio da irracionalidade e da insanidade, que nos levarão a situações de sofrimento e de pena para o sistema da vida, especialmente para os pobres. Concordo com Hegel, que escreveu: da História aprendemos que não aprendemos nada da História, mas que aprendemos tudo do sofrimento. Iremos ao encontro de grandes padecimentos. Quando a água chegar ao nosso nariz, saltaremos como loucos para nos salvar. E nos salvaremos, mesmo pagando alto preço pela falta de cuidado. Mas prefiro crer em Santo Agostinho, que dizia: aprendemos sim do sofrimento, mas muito mais do amor. Pois esse nos transforma e nos faz inventar mil meios para estar junto da pessoa amada. Então, acho que devemos amar o mais que pudermos a Mãe Terra, cada de seus seres, para sofrer menos e criar condições de futuro a todos.

Qual o papel da teologia hoje? ­
Há dois tipos de teologia: uma para cristãos e outra para pagãos. Para os cristãos, trata-se de aprofundar a proposta da revelação bíblica aceita pelos crentes, usando a razão, imbuída de afeto e amor. Eles têm direito de conferir racionalidade e expressão arquitetônica a sua fé para que ela possa ser internalizada e feita projeto de vida. Para os pagãos, trata-se de mostrar, também com o recurso da razão, sensível às boas razões presentes na proposta bíblica, como ela representa sentido para a vida humana, junto a outros portadores de sentido, e também como ela fortalece o princípio de esperança atuante em cada pessoa, pois todos somos feitos de utopias, ideais. Como a maioria dos cristãos não conhece sequer minimamente os conteúdos de sua fé, é dominante hoje a teologia para os pagãos-cristãos e para os pagãos-pagãos. No seu sentido mais direto, cabe à teologia pensar a presença de Deus na história humana e testemunhar que Deus não é somente o mistério insondável que de fato é, mas um mistério pessoal para o qual não é indiferente que os oprimidos se libertem, os famintos comam, os injustamente condenados recebam sua justiça e todos vejam realizado o desejo radical do ser por uma vida sem fim. Igrejas e religiões são mediações para que isso aconteça e espaços nos quais se pode fazer essa reflexão e não instituições com fins em si mesmas que tentam substituir Deus com ritos e manter presos fiéis nos limites de seu mundo.

O senhor fez 70 anos. Como encara o desafio da "velhice"? ­
Com 70 anos sou oficialmente velho. Mas não entendo a velhice como um fenômeno meramente biológico, um lento colapso do capital vital, mas como a última chance que a vida me dá para continuar a crescer, a melhorar e finalmente acabar de nascer, já que um dia comecei, continuei a nascer e agora importa concluir esse processo. Meu fim biológico será o começo de meu completo nascimento. Vejo com serenidade o pouco futuro que me resta. Anseio pelo encontro com a Suprema Realidade, que tranqüilizará meu coração e responderá a tantos porquês para que não encontrei resposta e que só Ele pode responder, porque conhece o sentido secreto dos bilhões de anos de lenta e penosa evolução rumo a um Reino no qual tudo será amoroso, transparente, verdadeiro, justo, belo e prazeroso.

>> Perfil
Nascido em Concórdia (SC), em dezembro de 1938, doutorou-se em teologia, filosofia, em 1970, em Munique. Foi ameaçado por autoridades de Roma, em 1992, renunciou às atividades de padre e se auto-promoveu ao estado leigo, o que chama de "mudar de trincheira para continuar a mesma luta".
Professor da Uerj, Boff é também doutor `honoris causa' pela Universidade de Turim, na Itália


http://ee.jornaldobrasil.com.br/reader/clipatextoorig.asp?pg=jornaldobrasil_117622/102565 20/12/2008

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