domingo, 15 de fevereiro de 2009

O direito de morrer

Rubem Alves*
“Eluana Englaro foi uma mulher italiana que entrou num estado vegetativo persistente no dia 18 de janeiro de 1992, depois de um acidente de carro. Ela se tornou o foco de uma batalha entre aqueles que apóiam e os que não apóiam a eutanásia. Depois de Eluana Englaro ter sido mantida viva artificialmente por 17 anos seu pai pediu que o tubo de alimentação que a mantinha viva fosse removido para que ela morresse naturalmente, declarando que ela havia claramente expresso o seu desejo de morrer no caso de um acidente que a deixasse em coma ou num estado vegetativo. As autoridades inicialmente negaram o seu pedido mas essa decisão foi posteriormente invertida.”
Sempre que se fala em eutanásia os seus opositores invocam razões éticas e teológicas. Dizem que a vida é dada por Deus e que, portanto, somente Deus tem o direito de tira-la. Eutanásia é matar uma pessoa e há um mandamento que proíbe que isso seja feito. Assim, em nome de princípios universais, permite-se que uma pessoa morra em meio ao maior sofrimento.
Pois eu afirmo: sou a favor da eutanásia por motivos éticos. Albert Camus, numa frase bem curta, disse que se ele fosse escrever um livro sobre ética, noventa e nove páginas estariam em branco e na última página estaria escrito “amor”.
Todos os princípios éticos que possam ser inventados por teólogos e filósofos caem por terra diante dessa pequena palavra: “amar”. Deus é amor.
O amor, segundo os textos sagrados, é fazer aos outros aquilo que desejaríamos que fosse feito conosco, numa situação semelhante.
Amo os cães e já tive dezenas. Muitos deles eu mesmo levei ao veterinário para que se lhes fosse dado o alívio para o seu sofrimento. Fiz isso porque os amava, eram meus amigos, queria o seu bem. E eu gostaria que fizessem o mesmo comigo, se estivesse na sua situação de sofrimento.
Defender a vida a todo custo! De acordo. É a filosofia de Albert Schweitzer e a filosofia de Mahatma Gandhi: reverência pela vida. Tudo o que vive é sagrado e deve ser protegido.
Mas, o que é a vida? Um materialismo científico grosseiro define a vida em função de batidas cardíacas e ondas cerebrais.
Mas será isso que é vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso todos os esforços deve ser feitos.
Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir.
A vida não pode ser medida por batidas e coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso.
Admitamos, para efeito de argumentação, que a vida é dada por Deus e que somente Deus tem o direito de tira-la. Qualquer intervenção mecânica ou química que tenha por objetivo fazer com que a vida dê o seu acorde final seria pecado, assassinato.
Vamos levar o argumento à suas últimas consequências: se Deus é o senhor da vida e também o senhor da morte, qualquer coisa que se faça para impedir a morte, que aconteceria inevitavelmente se o corpo fosse entregue à vontade de Deus, sem os artifícios humanos para prolonga-la, seriam também uma transgressão da vontade divina. Tirar a vida artificialmente seria tão pecaminoso quanto impedir a morte artificialmente – porque se trata de intromissões dos homens na ordem natural das coisas determinada por Deus.
A vida, esgotada a alegria, deseja morrer. O que eu desejo para mim é que as pessoas que me amam me amem do jeito como eu amo os meus cachorros.

Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1620349&area=2220&authent=6777309FECEA92675530BDECC89245

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