sábado, 28 de março de 2009

Laicidade não é laicismo

Dom Eugenio Sales*

No aeroporto de Roma, a 28 de novembro de 2006, por ocasião de sua viagem à Turquia, falando aos jornalistas, o papa Bento XVI assim se expressou sobre o tema laicismo e laicidade: "O laicismo, ou seja, uma ideia que separa totalmente a vida pública de qualquer valor das tradições, é um caminho cego, sem saída. Devemos voltar a definir o sentido de uma laicidade que realça e preserva a verdadeira diferença e autonomia entre as esferas, mas, também, a sua coexistência, a responsabilidade comum".

Recordo que, no discurso ao corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé, o papa João Paulo II, a 12 de janeiro de 2004, afirmou: "Evoca-se com frequência o princípio da laicidade, em si mesma legítima, quando é compreendida como distinção entre a comunidade política e as religiões (cf. Gaudium et spes, 76). Todavia, distinção não quer dizer ignorância! Laicidade não é laicismo! Ela não é senão o respeito por todos os credos por parte do Estado, que assegura o livre exercício das atividades espirituais, culturais e caritativas das comunidades dos crentes (...). Um diálogo sadio entre o Estado e as Igrejas que não são concorrentes, mas parceiros, pode, sem dúvida, favorecer o desenvolvimento integral da pessoa humana e a harmonia da sociedade".

Já em 11 de fevereiro de 2005, o santo padre João Paulo II escrevendo ao presidente da Conferência Episcopal Francesa teve as seguintes palavras: "O princípio do laicismo, ao qual o vosso país está muito ligado, se for bem entendido, faz também parte da doutrina social da Igreja. Ele recorda a necessidade de uma justa separação dos poderes (cf. Compêndio da doutrina social da Igreja, nº 571-572), que faz eco ao convite feito por Cristo aos discípulos: ‘Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus’ (Lc 20, 25). Por seu lado, a não-confessionalidade do Estado, que é uma não-ingerência do poder civil na vida da Igreja e das diferentes religiões, assim como na esfera do espiritual, permite que todos os componentes da sociedade trabalhem juntos ao serviço de todos e da comunidade nacional. De igual modo, como recorda o Concílio Vaticano II, a Igreja não tem por vocação a gestão do que é temporal, pois, ‘em razão da sua missão e competência, não pode confundir-se de modo algum com a comunidade política nem está ligada a nenhum sistema político’ (Constituição Gaudium et spes nº 76; cf. nº 42). Mas, ao mesmo tempo, é fundamental que todos trabalhem pelo interesse geral e pelo bem comum. É neste sentido que o Concílio diz: ‘No terreno que lhe é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autônomas. Mas ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Exercerão tanto mais eficazmente este serviço para o bem de todos quanto mais cultivarem entre si uma sã cooperação’".
O cardeal Tarcísio Bertone, atual secretário de Estado da Santa Sé, recentemente pronunciou uma conferência na sede da Conferência Episcopal Espanhola, por ocasião do 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Eis alguns tópicos: a liberdade religiosa, afirmou, "é o sustento das demais liberdades, sua razão de ser, pois transpassa o horizonte que tenta limitá-la a uma parcela íntima, a uma mera liberdade de culto ou a uma educação inspirada em valores cristãos, para solicitar ao âmbito civil e social liberdade para que as confissões religiosas possam exercer sua missão. O Estado democrático não é neutro com respeito à própria liberdade religiosa, mas que, como respeita as demais liberdades públicas, há de reconhecê-la e criar as condições para seu efetivo e pleno exercício por parte de todos os cidadãos".
Citando Bento XVI, o cardeal Bertone acrescentou que "não é expressão de laicidade, mas sua degeneração em laicismo, a hostilidade contra qualquer forma de relevância política e cultural da religião; em particular, contra a presença de todo símbolo religioso nas instituições públicas. (...) Tampouco é sinal de sã laicidade negar à comunidade cristã, e a quem a representa legitimamente, o direito de pronunciar-se sobre os problemas morais que hoje interpelam a consciência de todos os seres humanos, em particular dos legisladores e juristas", acrescentou.
Declarou, ainda, que quando a Igreja se pronuncia sobre um tema, "não se trata de ingerência indevida", mas "da afirmação e defesa dos grandes valores que dão sentido à vida da pessoa e salvaguardam sua dignidade. (...) Em resumo, trata-se de mostrar que, sem Deus, o homem está perdido, que excluir a religião da vida social, em particular a marginalização do cristianismo, afeta as próprias bases da convivência humana, pois antes de ser de ordem social e política, estas bases são de ordem moral", advertiu. O cardeal Bertone alertou que a Igreja "não reivindica o posto do Estado", mas respeita "a justa autonomia das realidades temporais", e "pede a mesma atitude com respeito a sua missão no mundo".
O cardeal Marc Ouellet, arcebispo de Québec, também tratou do assunto. Esta crise, segundo o purpurado, também está "mantida por uma retórica anticatólica cheia de clichês, que infelizmente se encontra com muita frequência nos meios de comunicação. Isso favorece uma verdadeira cultura do desprezo e da vergonha para com nossa herança religiosa e destrói a alma de Québec". Para o cardeal Ouellet, "chegou a hora de frear o fundamentalismo laicista imposto com fundos públicos".
A proibição dos sinais religiosos nos espaços públicos, segundo o cardeal, "equivale a promover a ausência de credo como o único valor que tem direito de afirmação", e isso se faz "para satisfazer a uma minoria laicista radical que é a única que se lamenta".
"Os crentes e os não-crentes levam consigo seu credo a todos os espaços que frequentam. Estão chamados a viverem juntos, a aceitar-se e a respeitar-se mutuamente". Devemos apoiar a legítima laicidade e não o laicismo.
*Arcebispo emérito do RJ
Jornal do Brasil - Sábado, 28 de Março de 2009 - 00:00
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/03/28/sociedadeaberta/laicidade_nao_e_laicismo.asp

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