sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sob o turbante de Simone

Universo de ícone do feminismo
ganha vida nova
com relançamentos
de suas obras e peça


Uma pergunta trivial, mas sutil, resume o mistério que sempre envolveu a escritora francesa e feminista Simone de Beauvoir (1908-1986). O que ela escondia com seu famoso turbante? A jornalista parisiense Madeleine Chapsal escreveu, certa vez, que duas coisas definiam Simone: seu turbante e seu ar de enfado. Por que usava aquele turbante? "Seria para parecer menos feminina ou para melhor realçar a sua bela testa de intelectual?", Madeleine pergunta. Que significado tinham os cabelos que ela se recusava a exibir?

Quando lançou, em 1949, o célebre "O Segundo Sexo" - cuja reedição inaugura série de nove relanaçamentos da autora pela Nova Fronteira-, Simone afirmava que as mulheres viviam uma situação de esquartejamento, incapacitadas de conciliar os vários aspectos de sua vida diária. Era um massacre. Como se elas jamais pudessem despir o uniforme feminino. Talvez o turbante fosse uma estratégia de Simone para rebelar-se contra esse uniforme.

Escreveu seu livro na esperança de que as mulheres parassem de "fingir que eram elas mesmas" - isto é, se limitassem a encenar, como num palco, o papel que os homens lhes destinavam. A mulher, para Simone, não passava de um personagem do misticismo masculino, de uma invenção do homem. Era dessa invenção que ela devia se despir para, livre do olhar do outro, chegar a si. Mas Simone também recusava a mística feminina - aquela que vê a mulher como especial ou sensível. Queria-a simplesmente humana. Parte desse universo beauvoiriano é reconstruído pela atriz Fernanda Montenegro no espetáculo "Viver sem Tempos Mortos", baseado em cartas e textos da escritora, em cartaz em São Paulo.

O turbante de Simone não era, portanto, algo que a encobria, ou sob o qual se escondia. Ao contrário, era o sinal de uma diferença, um ato (e não um peso). Simone de Beauvoir partia do princípio de que as mulheres estavam encurraladas. Viviam para cumprir papéis, para desempenhar scripts - não lhes sobrava espaço para cultivar segredos. São os segredos que definem a singularidade, que fazem alguém existir. No máximo, elas podiam dedicar-se aos melosos "diários femininos". Maneira tola de encenar o misticismo feminino que Simone, firme, sempre recusou.

Na vida de Simone de Beauvoir o sentimento feminista aparece no mesmo momento em que o encanto pela religião declina. O primeiro esboço desenhou-se quando, ainda jovem, passou a ler, secretamente, livros destinados "aos homens" - Emile Zola, Guy de Maupassant, Anatole France -, autores considerados perigosos para uma mulher. Notável percurso: para chegar ao feminino, Simone teve, primeiro, que se desviar dos rituais do feminino. Aí, talvez, o turbante - ornamento que, entre os hindus reforça as convicções e a força interna - comece a fazer sentido.

O desejo de escrever surgiu aos 15 anos. Era uma vontade de salvação, "substituía Deus", disse. Escrever tornou-se, desde cedo, uma maneira de existir, e não uma profissão. Logo começou a ler Claudel, Valéry, Proust, Gide. Começou, também, a escrever um "diário íntimo", muito diferente das confissões aguadas das mocinhas; um diário no qual a escrita era resistência. Para não ser a mulher que estava destinada a ser, Simone precisava escrever. Desde cedo, vida e escrita se entrelaçam.

Quando começou a estudar filosofia, Simone logo se incomodou com a "voz impessoal" da maior parte dos filósofos. Também Jean-Paul Sartre - com quem ela viveu uma relação amorosa que durou 40 anos - reclamava que quase nunca conversavam com ele sobre literatura. Sartre admirava Flaubert, para ele uma prova de que a literatura era, antes de tudo, "uma feroz tomada de posição". Influenciada pelo companheiro, Simone de Beauvoir fez da escrita uma maneira de viver e, da vida, um caminho para as palavras.

Para Simone, escrever era falar pessoalmente aos outros - como se estivesse em uma mesa de bar ou em um banco de jardim. Era assim que lia os grandes escritores: como se eles redigissem mensagens exclusivamente a ela destinadas. A ideia de escrever "O Segundo Sexo" veio-lhe no dia em que percebeu que, sempre que lhe perguntavam quem era, se sentia obrigada a dizer: "Sou uma mulher". Homens não se apresentam dizendo: "Sou um homem". Para Simone, ser mulher mudava tudo, pois a elas se destinava outro tipo de formação; delas se esperava, também, que habitem outro imaginário - como se vivessem em outro mundo. Ainda assim, bastou que lançasse seu livro para que a acusassem de ressentimento contra os homens.

Simone nunca separou a vida da escrita. Disse certa vez: "Quando me vem uma ideia, escrevo um ensaio". Por certo, quando escrevia um ensaio, algo em sua vida também se modificava. Essa sincronia se tornou não só um estilo, mas uma concepção da existência. Muitos consideram, em consequência, que a literatura de Simone é excessivamente pessoal; que, no fundo, ela escondia um culto do eu e não passava de uma manifestação de vaidade. Ela não transigia: "Escrever sobre mim é a maneira que mais me convém para falar aos outros sobre eles próprios".

Também a criticaram porque, apesar das teses feministas, teve sua vida misturada à de Sartre. Dizia-se que Simone o consultava em excesso e se submetia. Ela se defendia. "Não somos a mesma pessoa, mas temos as mesmas recordações." "O Segundo Sexo" provocou reações furiosas de muitos homens. Diziam que o livro mostrava que ela não passava de uma diluidora do existencialismo sartriano. Os mais insensíveis o leram como um "Sartre para moças".

Simone criticava, com contundência, a naturalização do corpo masculino. O mundo seria "naturalmente" masculino, enquanto a mulher - com seu grande furo - não passaria de uma desviante. Simone jamais deixou que essas ideias a paralisassem; ao contrário, com elas - fazendo do veneno alimento - fortaleceu-se. Seu livro fundou o feminismo moderno. Logo a acusaram de glacial, ninfomaníaca, lésbica, frígida. No avesso desses ataques, a força do livro se evidenciou.

Mulher, desejou desvendar, em "O Segundo Sexo", as particularidades da condição feminina. Idosa, em "A Velhice", livro de 1970, enfrentou os clichês do envelhecimento. Suas inquietações pessoais se tornaram, sempre, reflexões gerais. Escrever, para Simone, não era, em definitivo, o reino do eu. Um de seus grandes temas sempre foi a ambiguidade, que desenvolveu em "A Moral da Ambiguidade". Não seria o turbante justamente a marca do ambíguo? Que cabelo ali se escondia? Feminino? Masculino? O turbante não cobre o rosto, mas o cérebro. É da ambiguidade do pensamento que Simone de Beauvoir sempre tratou.

Fez da literatura uma forma inventiva de autobiografia. Quando falamos de Simone de Beauvoir, de qual Simone falamos - da que existiu ou da que escreveu? Deixou-nos uma resposta: "Escrever é seguir o ditado de uma espécie de ditafone que todos carregamos dentro da cabeça".

Um comentário: