quarta-feira, 6 de maio de 2009

Um Deus injusto

John Rawls
O jornal italiano Il Sole-24 Ore, 03-04-2009, publicou artigo de John Rawls, o mais conhecido e celebrado filósofo político norte-americano, falecido aos 81 anos em 2002, em que o autor questiona o porquê de suas creñças religiosas terem mudado.
Segundo ele, muitas teorias "pintam Deus como um monstro movido somente pelo próprio poder e pela própria glória. Como se marionetes miseráveis e deformadas, como eram descritos os seres humanos, pudessem glorificar qualquer coisa!". A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.

Perguntei-me com freqüência por que minhas crenças religiosas tenham mudado e isso tenha ocorrido de modo particular durante a guerra. Comecei como fiel da Igreja episcopal, para abandoná-la completamente a partir de junho de 1945. Três episódios se destacam na minha memória: Kilei Ridge; a morte de Deacon; ter sido noticiado sobre o Holocausto e refletir sobre isso. O primeiro episódio ocorreu pela metade de dezembro de 1944. Terminara a batalha que a companhia F do 128º regimento de infantaria da XXXII divisão conduziu para conquistar o cume acima da cidade de Limon, na ilha de Leyte; a companhia limitava-se a manter a posição. Certo dia chegou um pastor luterano. Durante a função religiosa pronunciou uma breve homilia na qual afirmou que Deus apontava os nossos projéteis contra os japoneses e ao mesmo tempo nos protegia deles. Não sei por que, mas esta afirmação me irritou. Critiquei o pastor (que era um tenente) porque dizia o que eu considerava que ele soubesse perfeitamente – era um luterano – que eram mentiras sobre a divina providência. Que razão podia tê-lo impulsionado senão levar conforto às tropas? No entanto, a doutrina cristã não devia ser utilizada para este fim, embora eu soubesse perfeitamente que o era.

O segundo episódio – a morte de Deacon – foi em maio de 1945, sobre a pista de Villa Verde na ilha de Luzon. Deacon era uma pessoa esplêndida; tornamo-nos amigos e compartilhamos uma barraca no regimento. Um dia, o primeiro sargento veio até nós em busca de dois voluntários, um que devia ir com o coronel a um lugar onde este pudesse observar as posições japonesas, e o outro que devia doar sangue do qual tinha extrema necessidade um soldado ferido do hospital de campo, ali naquele lugar. Ambos consentimos, mas o que cada um de nós haveria de fazer dependia de quem tivesse o grupo sanguíneo adequado. Já que o meu o era e o de Deacon não, ele foi com o coronel. Sem dúvida os japoneses devem tê-los localizado, uma vez que logo começaram a chegar em sua direção 150 tiros de morteiro. Deacon e o coronel saltaram dentro de uma trincheira, mas, quando uma granada explodiu lá dentro, morreram ambos na mesma hora. Fui totalmente incapaz de encontrar consolo, nem conseguia afastar de minha mente o episódio. Não sei por que este episódio tenha me golpeado tanto, bem além de meu afeto por Deacon, já que a morte era um evento comum. Mas, penso que me tenha golpeado pelas formas das quais farei menção daqui a pouco.

O terceiro episódio é, na verdade, algo mais que um episódio, uma vez que perdurou por um longo período de tempo. Em minhas recordações, teve início em abril, em Asigan, onde o regimento estava fazendo uma pausa da linha de frente e recebendo substituições. Fomos aos espetáculos cinematográficos seriais para o exército, onde também foi dada notícia dos comunicados do serviço informativo do exército. Creio ter sido ali que ouvi pela primeira vez sobre o Holocausto, já que foram tornados públicos os primeiríssmos relatórios das tropas americanas que se defrontaram com os campos de concentração. Naturalmente muitas coisas já eram sabidas bastante tempo antes, mas não eram conhecidas aos soldados no campo de batalha.
Estes episódios, especialmente o terceiro, logo que chegaram ao domínio público, me golpearam do mesmo modo, sob forma de uma pergunta sobre a possibilidade da prece. Como podia orar e pedir a Deus que me ajude, ou ajude minha família, ou meu país, ou qualquer outra coisa amada e no centro de minhas preocupações, quando ele não havia salvo milhões de judeus de Hitler? Quando Lincoln interpreta a Guerra Civil americana como punição divina pelo pecado da escravidão, uma punição igualmente merecida pelo Norte e pelo Sul, se vê que Deus age justamente. Mas, o Holocausto não pode ser interpretado nesta ótica, e toda tentativa sobre a qual tenho lido de interpretá-lo desta maneira é horrível e malvada. Para interpretar a história como expressão da vontade de Deus, tal querer divino não pode não adequar-se com as mais fundamentais idéias de justiça, como são por nós conhecidas. Para que outro fim podem ser as mais fundamentais idéias de justiça? Cheguei tão rapidamente a refutar isso, como considerei igualmente horrível e malvada a idéia da supremacia do querer divino. Os meses e anos que se seguiram conduziram-me a uma crescente refutação de muitas das principais teorias cristãs e o cristianismo se tornou para mim cada vez mais estranho. Minhas dificuldades eram sempre de cunho moral, desde o momento em que meu fideismo permanecia íntegro diante de todas as preocupações sobre a existência de Deus. As assim ditas provas da existência de Deus contidas em Santo Tomás e em outros autores não provavam, em todo o caso, nada que tivesse um significado religioso. Parecia-me claro. Todavia, as idéias de justo e de justiça, expressas nas teorias cristãs, eram uma questão diversa.

Cheguei a considerar muitas delas como erradas e, em alguns casos, também repugnantes. Ente estas estavam as doutrinas do pecado original, do paraíso e do inferno, da salvação por meio da verdadeira fé e com base na aceitação da autoridade sacerdotal. A menos que alguém não fizesse uma exceção para si mesmo e assumisse a própria salvação, cheguei a ter a sensação que a teoria da predestinação fosse tremenda, uma vez que se refletisse bem além e se compreendesse o que significava. A dupla predestinação, no modo como foi expressa de modo rigoroso por Santo Agostinho e por Calvino, parecia particularmente tremenda, embora eu tivesse que admitir que também estava presente em Santo Tomás e Lutero e, sem dúvida, fosse apenas uma conseqüência da própria predestinação. Tornou-se para mim impossível levar a sério todas estas teorias, mas, não no sentido de que as provas a seu favor fossem débeis ou incertas. Elas antes pintam Deus como um monstro movido somente pelo próprio poder e pela própria glória. Como se marionetes miseráveis e deformadas, como eram descritos os seres humanos, pudessem glorificar qualquer coisa! Também cheguei a pensar que poucas pessoas aceitassem essas teorias ou sequer as entendessem. Para estes a religião é puramente convencional e lhes oferece conforto e consolação nos momentos difíceis.

Nos anos imediatamente subseqüentes à guerra interessei-me muito pela história da Inquisição e pelo modo pelo qual foi desenvolvida. Li numerosos livros sobre o tema, inclusive partes da história da Inquisição na Idade Média, de Henry Lea, a recensão de Lorde Acton a esta obra e as teses de Acton sobre a corrupção do poder dos sacerdotes e também do poder político. Acabei tendo a sensação de que a grande maldição do cristianismo era a de perseguir os discordantes e os hereges desde a época de Irineu e Tertuliano. Isto me pareceu ser algo novo: a religião grega e romana era uma religião civil e era finalizada a instilar a lealdade à polis ou ao imperador, especialmente em épocas de guerra e de crise. Gregos e romanos insistiam neste aspecto, mas, além disto, a sociedade civil podia ser livre em ampla medida e muitas religiões diversas floresceram na polis e no império romano. A história da Igreja inclui, ao invés, uma prestação de contas dos seus duradouros elos históricos com o Estado e de seu uso do poder político para estabelecer a própria hegemonia e oprimir as outras religiões.

Sendo uma religião da salvação eterna que requer verdadeira fé, a Igreja se viu na posse da justificação para a repressão da heresia. Assim, cheguei a considerar a negação da liberdade religiosa e da liberdade de consciência como um mal enorme, o que torna as pretensões de infalibilidade dos papas impossíveis de serem aceitas por mim. É verdade, a Igreja afirma a infalibilidade somente em questões de fé e de moral; a doutrina não prevê que o papa seja infalível enquanto homem, mas que Deus fará de modo que o homem que é papa não fale de maneira mentirosa? No entanto, se a liberdade de religião e a liberdade de consciência não são questões de fé e de moral, que outra coisa são? Estas liberdades se tornaram pontos fixos das minhas opiniões morais e políticas. No final, também se tornaram elementos políticos fundamentais de minha visão da democracia constitucional, institucionalmente realizada pela separação entre Estado e Igreja.
http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22014 -Postado no IHU/Unisinos 06/05/2009

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