domingo, 7 de junho de 2009

Badulaques 136 ou CXXXVI

Rubem Alves
Na porta do Paraíso está uma criança. Não consulta livro nem pergunta nada. Só abre um baú enorme, onde estão guardados todos os brinquedos inventados e por inventar, e diz: “Escolha um para brincar comigo!” Quem souber brincar entra.
São as crianças que, sem falar, nos ensinam as razões para viver. Elas não têm saberes a transmitir. No entanto, elas sabem o essencial da vida. O essencial da vida não é o trabalho, mas o brinquedo.
Quando jovem eu ia às livrarias para comprar livros de palavras. A idade me fez voltar à infância. Recuperei a felicidade infantil de ver figuras. Vou só para ver. Ver é um sentido maravilhoso: não é preciso ter para ver. Muitos que têm, nada vêm, por serem cegos. Mas mesmo os que não têm dinheiro podem sentir os prazeres de ver.
Se eu tivesse intimidades com o Criador eu lhe diria que há uma coisa a se fazer para aliviar o sofrimento das crianças: é só trocar os olhos dos pais. Pôr, no lugar deles, os olhos dos avós.
Trabalho que é brinquedo tem o nome de arte. A felicidade está no próprio fazer, e não no que se possa ganhar fazendo. O artista faz mesmo que não ganhe nada.
Deus é uma criança, eterna. Essa é a razão porque nós, adultos, não o entendemos. Somos sérios. Mas Deus brinca...
“O máximo de maturidade que um adulto pode atingir: quanto tem a seriedade da criança ao brincar...” (Nietzsche)
Coitados dos adultos! Arrancaram os olhos vagabundos e brincalhões de crianças e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho, limpa-trilhos, que servem para abrir caminhos na direção do que se quer fazer.
“Sem uma infância serena e completa, toda vida posterior fica mutilada.” Palavras de Janusz Korczak, educador polonês, morto nas câmaras de gás de Treblinka (1942) com as 200 crianças do seu orfanato. Um dos seus livros tem o título Como amar uma criança.
Quando eu era pai jovem eu tratava de preparar um futuro para os meus filhos. Era o meu futuro, o futuro que eu sonhava. Não compreendia que os sonhos das crianças não são os sonhos que os adultos sonham. Os sonhos que brotam das crianças colocam os nossos de cabeça para baixo.
É brincando que a gente se educa e aprende. Alguns, ouvindo isso, pensam que quero tornar a educação coisa fácil. Coitados! Não sabem o que é brincar! Brinquedo fácil não tem graça. Brinquedo, pra ser brinquedo, tem de ter um desafio.
No momento em que Adão e Eva pararam de brincar Deus os expulsou do Paraíso. Não fez isso por não gostar deles, mas por medida preventiva: sabia que qualquer Paraíso vira inferno quando quem não sabe brincar entra lá. Daí a reza da Adélia Prado: “Meu Pai, me cura de ser grande!”
Dentro de cada pessoa que procura terapia, por detrás dos 10 mil sintomas que elas trazem, existe um único pedido: “Não quero prazer. Eu quero alegria!” Ah! Se eu soubesse o segredo da alegria, como sei o segredo das sopas que dão prazer! Não há receitas para alegria. Ela vem porque vem, sem que se saiba como ou de onde. Como o vento que sopra, como um pássaro encantado que vem e vai...
Minha contribuição à teoria psicanalíica: afirmo que mais fundo que o “princípio do prazer” está o “princípio da alegria”. A alma tem poderes mágicos, alquímicos. Ela sabe fazer alegria com o sofrimento. Segundo Nietzsche, esse é o segredo do teatro grego. Por isso o público voltava ao teatro para chorar com a tragédia: era lá que morava a beleza. Como explicar o deleite estético que se tem na ópera, a despeito do seu drama? Por que se volta à cena do sofrimento? Porque lá a tragédia está transfigurada pela beleza. A beleza, como sugeriu Rilke, nos permite contemplar o Horrendo, sem ser por ele destruidos.
Mesmo águas barrentas podem refletir cenários luminosos e coloridos. Tal é o caso do desenho de Escher denominado Poça d’água — a estrada enlameada, os sulcos barrentos deixados pelos pneus, a água empoçada: mas na água barrenta, refletidas, as copas dos pinheiros contra o céu azul...
Imagino que Escher pode ter se inspirado em Nietzsche para fazer o seu desenho. “A alegria do artista que desafia todo sofrimento é meramente uma imagem brilhante de nuvens e céu espelhada no lago negro da tristeza.”
O prazer é incompatível com sofrimento. Mas a alegria frequentemente aparece como a artista que transforma o sofrimento em beleza. “Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena. Quem quere passar além do Bojador tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu. Mas nelle é que espelhou o céu.” (Fernando Pessoa) É no abismo e no perigo que o céu parece espelhado...

*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp? noticia=1637344&area=2220&authent=670156245037426723560650154245

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