domingo, 2 de agosto de 2009

O ataúde de cristal

Mauro Santayana*

Era o meio da tarde, em Madri. Talvez já fosse o outono de 1972, porque a memória registra folhas amareladas nas árvores do elegante bairro de Puerta del Hierro. O Jornal do Brasil me enviara de Bonn à Espanha a fim de ouvir Perón, cujo retorno à Argentina estava em andamento. O acesso a Perón era controlado por Lopez Rega, que pertencera à Polícia Nacional argentina, servia ao general como guarda-costas, secretário pessoal e bruxo amador, e se destacaria nos crimes cometidos pela Tríplice A, meses depois, em seu país. O que me disse Perón valia para aquele momento. Muito mais importante do que me disse el general, foi a visita, acompanhado de Lopez Rega, ao segundo andar da residência, onde se encontrava, em ataúde de cristal, o corpo embalsamado de Eva Perón. Parecia uma boneca de cera.

Inquietou-me o culto que lhe dedicavam o ex-policial e Isabel Perón. Tive a certeza de que se tratava de um simulacro. Um e outro cumpriam o ritual macabro porque era de seu interesse. Talvez Perón a isso fosse indiferente. Eram todos aproveitadores do mito. Aquela menina de Los Toldos, que conquistara Buenos Aires e se fizera deusa de los grasitas, continuava dominando a Argentina. Sua sombra iluminada se mantém sobre o destino do país até os nossos dias.

Evita e Guevara foram os dois grandes mitos revolucionários do século 20, mas se o Che foi homem de ideias e do combate armado, com sua vida e pensamento submetidos à análise da razão histórica, a menina de Los Toldos permanece sendo um mistério. É nesse mistério que se fez a sua grandeza. Como atriz de radionovelas, Eva protagonizou uma série sobre as grandes mulheres da história. Uma delas foi Teodora, também atriz, que, com sua beleza – mas também seu senso político – se fez amante de Justiniano, depois sua esposa e imperatriz; promoveu as primeiras leis em favor das mulheres e foi mais importante do que o marido – isso no século 6 depois de Cristo. Em quase tudo, Eva seguiu o script da grande Teodora que, depois de morta, foi declarada augusta.

Se não fosse Teodora, os inimigos de Justiniano o teriam apeado do trono, na revolta de Nika, em 532. Acossados e amedrontados, Justiniano e seus ministros se preparavam para fugir, quando Teodora os admoestou. Se quisessem, fugissem: ela permaneceria para morrer com suas vestes de imperatriz, que lhe serviriam de honrosa mortalha. O brio os levou a resistir e a vencer a insurreição. Eva, quando Perón hesitava em ir à Casa Rosada, a fim de acalmar os manifestantes que ela mobilizara em seu favor, o obrigou a fazê-lo, e isso mudou a história de sua pátria. Como Teodora, Eva lutou pelas mulheres – e a ela se deve o direito feminino ao voto na Argentina.

Eva nasceu em 1919 e iniciou a sua carreira ao lado de Perón aos 25 anos, em 1944. Sete anos depois, em 26 de julho de 1952, morria, em plena glória. Como Teodora, depois de lenta agonia – e, como a imperatriz, de câncer.

Sem pai que a reconhecesse, menosprezada pelas irmãs mais velhas, humilhada em seus primeiros passos em Buenos Aires, Maria Eva se definiu dias antes de morrer: "Tenho carne, sangue e alma de povo. Não podia fazer outra coisa, senão entregar-me ao povo".
*Jornalista
Jornal do Brasil - Domingo, 02 de Agosto de 2009 - 00:00
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/08/02/pais/mauro_santayana_o_ataude_de_cristal.asp

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