quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Ideias sobre o mito fundador

L. A. Francischelli*


Nas palavras de Assis Brasil, O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, funda o povo gaúcho. Assim como a Odisseia de Homero construiu o povo grego. A criação literária do Capitão Rodrigo é o símbolo gaúcho. Ana Terra, a mulher épica da fundação. Os personagens de Erico são míticos tanto quanto Ulisses e a persistente Penélope. Esboça-se, assim, nesses nomes, o heroísmo e a fidelidade.
A identidade dos gaúchos desenhada nessa ficção literária delineou o homem ético, solidário, responsável por sua palavra e amante de sua terra-mulher.
O homem das coxilhas e campos a perder de vista, que guerreia contra as tiranias de qualquer índole, que faz história com a Revolução Farroupilha e funda a República de Piratini, expressa o sonho republicano, mostrando um povo altivo e senhor de seu destino.
Momento brilhante. O pensamento de liberdade e fidalguia se espraia pelo país. Segue-se, entretanto, o declínio.
O gaúcho ficou pobre. A riqueza mental transformou-se em melancolia da alma com repercussões na algibeira.
Essa bancarrota ameaçou toda a construção do nosso ser gaudério: aquele altivo cavaleiro que percorria os caminhos de coração aberto, disposto a qualquer entrevero para salvar uma chinoca, com lenço no pescoço e chapéu na testa, cavalgando o pingo sem medo do futuro, perdeu o gosto pela aventura, marginalizou-se, extraviando suas mais caras tradições e seus valores.
Cyro Martins registra esse momento lamentável de nossa história. Homem simples como também o era Erico, captou em sua trilogia do “gaúcho a pé” a desvinculação do homem gaúcho da terra, do abandono de suas lidas campeiras, em que o cavalo era o símbolo inquestionável da liberdade de cavalgar a planície sem cercas dos pampas, para lançar-se às estradas e daí para um cortiço da cidade grande. De um campo sem limites de horizonte para o limite da parede vizinha, sem nenhuma intimidade com a solidão que a grandeza das colinas e o verde do campo albergavam.
Era preciso encontrar uma saída. Estávamos no descaminho. O ser do gaúcho se encontrava agonizante. Surge então, como na Grécia antiga, o mito gaúcho – Paixão Côrtes, Barbosa Lessa e outros, no fim da década de 40 e na de 50, trabalham na construção dessa mitologia.
Inicia-se, através deles, o resgate dos símbolos e das histórias que circulavam de boca em boca, acerca do passado glorioso dos nossos ancestrais, “não era uma mentira a ser desmistificada, mas a expressão de uma virtualidade, de algo que dá mostras de poder ser, de uma dimensão que quer entrar na realidade, na forma de acontecimento que a transforma e a reinvente” (J. M. Wisnik – 2008).
O processo toma corpo nos centros de tradições. Ali, o gaúcho volta ao lugar de antanho, aquele homem que acredita na verdade e na honra, recuperando nossa autoestima colocada na berlinda pelo gaúcho a pé.
*Psicanalista

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