sábado, 19 de setembro de 2009

Luc Ferry propõe desvendar 'Críticas' de Kant como objeto de consumo

Haron Gamal*

LUC FERRY, filósofo francês nascido em 1951, tem mais de 15 livros publicados, entre eles, um de grande sucesso: O que é uma vida bem sucedida. Durante os anos de 2002 a 2004, ocupou o cargo de ministro da Educação, na França. Neste mais recente livro publicado no Brasil, pretende apresentar o pensamento de Immanuel Kant ao grande público. Eis suas palavras: “Fiz todo o possível para que a apresentação seja acessível a quem estiver pronto a consagrar um pouco de tempo e, seria vão dissimular, certo esforço intelectual à compreensão de um dos maiores filósofos de todos os tempos, sem para tanto ter conhecimentos filosóficos prévios”. Ainda na introdução, o pensador francês diz que milhares de obras já foram consagrados ao filósofo de Königsberg, mas poucos se propuseram a explicá-lo. Portanto, seu objetivo, na primeira parte do livro, é possibilitar “chaves de leitura eficazes, retirar os principais pontos que dificultam a compreensão”.

O autor incorre num perigoso equívoco ao dar pouca atenção à diacronia na obra kantiana e ao pensamento “em progresso” do filósofo durante toda a vida. Não se podem pegar exemplos isolados para apresentar aporias, uma vez que o próprio Kant fez modificações no decorrer do tempo. Seria mais honesto expor a questão como o faz Höfe, descrevendo o percurso do pensador alemão desde os primeiros escritos e as marchas e contramarchas de seu pensamento.
A apreensão da realidade em Kant passa necessariamente pelo sujeito, sem que isso configure sua filosofia como idealista. A antinomia idealismorealismo, de que reclama Ferry dedicando a ela dezenas e dezenas de páginas e repetindo posições críticas feitas por pensadores que hoje são pouco representativos, precisa ser colocada dentro da perspectiva proposta pelo próprio Kant. A apreensão da “coisa em si” passa em primeiro lugar pela intuição; daí concluir que tudo o que é vivenciado pela imaginação remete à concepção de uma filosofia idealista é não saber ou não querer contextualizar as questões apresentadas. A concepção fenomênica em Kant destaca sujeito e coisa em si, afirma que nem um nem outro existem isoladamente, mas são fenômenos que precisam ser percebidos para fazer parte do mundo das aparências. Não existiria o sujeito caso não houvesse coisas a serem percebidas, não haveria objeto caso não existisse o sujeito para percebê-lo.

A filosofia kantiana é por demais complexa para ser refletida dentro dos padrões exigidos por Luc Ferry.

O que se percebe de grandioso em Kant são os pressupostos que o levaram a enveredar pelo pensamento crítico: o impasse entre as correntes filosóficas contemporâneas a ele. Kant parte em busca de uma “salvação” para a própria filosofia, mas sem deixar de apresentar argumentações e sólidos conceitos que ainda são discutidos hoje. Outro ponto importante é que o criticismo kantiano levará ao desenvolvimento de uma teoria do conhecimento. As aparentes aporias levantadas por alguns de seus opositores apenas podem ser chamadas assim caso as questões sejam observadas isoladamente, e não a partir do todo sistêmico.

Ferry inicia corretamente, cita a influência da física e da revolução coperniciana nas ciências da época, o que situa a filosofia kantiana entre o pensamento antigo e o moderno. O homem antigo tomava a natureza como modelo, imitava-lhe a suposta beleza, completude e harmonia. O problema é que o ser humano não é perfeito, logo não pode conceber um todo perfeito; o homem é finito, assim não tem capacidade para entender e imitar a suposta perfectibilidade e infinitude do universo.

A partir da modernidade descobrimos que na natureza não há harmonia alguma; na verdade, predominam o caos, os campos de tensão e de choque em que vence o que possui a maior força. Outro ponto seria: como a natureza pode ser boa e perfeita já que somos vítimas dos seus fenômenos, como tufões, terremotos e outras ações que nos causam destruição?

O homem do século 18 já se havia conscientizado de sua pequenez e da impossibilidade de apreender o cosmo. Uma vez que o ser humano é finito e sem equipagem para desvendar o que está além dele, que transita no estatuto da falibilidade e que, ao mesmo tempo, a natureza não é exemplo a ser seguido, qual seria a perspectiva da razão e do conhecimento nesse novo contexto? É atrás disso que vai Kant. O que posso saber? Até aonde vai a razão? Seríamos seres livres ou estaríamos presos a um tipo de força universal que nos governa a seu bel-prazer? Existe realmente a liberdade? Caso a resposta seja afirmativa, qual moral a seguir? Daí estaria aberto um vasto campo para pensar o humano no contexto da modernidade.

O livro é dividido em três partes. A primeira corresponde às três Críticas de Kant: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática e Crítica da faculdade de julgar. Este é o trecho do livro em que Ferry diz explicar a obra do filósofo ao leitor mediano. A empreitada em nada acrescenta ao que estamos acostumados a encontrar em termos de bibliografia sobre as Críticas. Inclusive, o estilo de Ferry – com idas e vindas, referências constantes de que voltará ao assunto mais à frente, notas de rodapé sem a bibliografia correspondente no final do livro – envolve o leitor num certo barroquismo e o confunde.

A escolha do termo “kantista” em vez de “kantiano” soa mal ao leitor brasileiro. Também se sente a ausência de índices de assuntos e onomástico, com referências às datas de nascimento e morte dos autores citados, já que Ferry se pega a muitos filósofos do segundo time. Há um erro grosseiro na página 290; segundo o texto, o rei executado pela Revolução Francesa foi Luís XIV. É possível que essas questões sejam problemas da edição brasileira.

A segunda parte do livro apresenta as interpretações da obra de Kant, atendo-se ao que se escreveu sobre as antinomias, sobretudo à que se refere ao idealismo e realismo. A terceira parte chama-se “Estrutura e desdobramentos do sistema kantista: a arquitetura e a história”, em que o autor francês se baseia para ir em busca da praticabilidade do kantismo no percurso histórico e, possivelmente, na atualidade.

Outra coisa que incomoda no pensamento de Ferry é a tentativa de tornar a filosofia como uma espécie de sotoriologia, isto é, uma teoria da salvação, que, segundo ele, origina-se nos estoicos. O pensamento, que sempre foi, no bom sentido, um complexo de ideias perigosas, estaria a serviço de um novo estilo de vida que levaria à felicidade. Na história da filosofia, é difícil encontrar autores que estejam buscando modelos de compactuação com o poder. Mas é o que acaba acontecendo em Kant uma leitura das três críticas. É como se a filosofia se houvesse transformado num objeto de consumo como outro qualquer, e um objeto que apontaria caminhos. Nas próprias palavras do autor, “uma religião sem Deus”.

Talvez o filósofo francês represente uma espécie de pensamento pop contemporâneo, desenvolvido a partir dos anos de 80, levado ao extremo com os conceitos de produtividade e de eficácia na década de 90 e que, no atual momento, junto com a crise econômica, dá mostras de esgotamento. Seria melhor voltarmos os olhos um pouco mais atrás e elogiar a melancolia da Escola de Frankfurt.

* Professor de literatura e doutorando em literatura brasileira pela UFRJ.
Jornal do Brasil - Cadernos Idéias - 18/09/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário