segunda-feira, 21 de setembro de 2009

"A luta popular hoje deve ser ANTICAPITALISTA"

Virgínia Fontes*

Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, ela analisa a crise estrutural do Senado, as mudanças processadas pelas forças do capital nos governos de FHC e Lula, os motivos da desmobilização dos sindicatos de trabalhadores, os partidos políticos, as eleições e as possibilidades de avanço das lutas populares, as quais, para ela, devem estar focadas na luta anticapitalista.

Fiquem com a entrevista.

Hamilton Octavio de Souza – Para começar, fale sobre você, onde nasceu e como se tornou historiadora e professora universitária.
Virgínia Fontes – Bem, eu sou filha de classe média modesta, aliás de um casal quase bizarro, meu pai era filho de estivador do cais do porto, único de uma família numerosa fazendo carreira no serviço público, e minha mãe era filha de uma família rica decadente do nordeste. Era tudo contraste. Estudei sempre em escola pública, nasci no Rio, sou carioca bem brasileira, de pai carioca e mãe pernambucana. Meu pai era do Banco do Brasil e depois passou para o Banco Central. Só estudei em escola pública, que eu me lembre, meus filhos também, aliás, isso foi uma questão de honra. Nasci num bairro muito modesto no Rio de Janeiro que era Marechal Hermes, depois meu pai melhorou de vida e foi para Laranjeiras, que é um bairro de zona sul, e aí teve muito filho, não agüentou o tranco em Laranjeiras e foi pra Jacarepaguá. Nós somos 7 irmãos, 3 mulheres e 4 homens. Depois eu saí muito jovem de casa, em plena ditadura, com 18 anos e resolvi fazer História porque era uma paixão, era o que eu curtia, queria entender o mundo, queria pensar o mundo com 18 anos. Quando eu tinha uns 15 anos eu fui fazer um teste vocacional, porque eu não sabia o que eu queria ser e aí o resultado do teste não me ajudou em nada, dizia que eu era pluri apta, pode fazer o que quiser. Resolvi fazer escola técnica para ganhar dinheiro, sofri três anos na escola técnica, descobri que aquilo eu detestava e fui pra História.

Fernando Lavieri - Qual o curso técnico?
Eletrônica, na escola técnica federal, a primeira turma de mulheres, era uma coisa divertidíssima, em plena ditadura, nessa época eu estava no PCB, saí logo depois também.

Tatiana Merlino - Seus pais tinham alguma militância política?
Não, nenhuma. Fiquei um tempinho no PCB, bem jovem, entre os 17 e 22 anos, depois me afastei, por várias razões. Tive filho, casei, separei, me casei de novo, tive filho. Aí estudava, trabalhava, tinha dois empregos mais filho mais estudo, então você imagina que era uma vida fácil. Eu sei bem o que é mulher no mundo contemporâneo: acorda às 6 da manhã, fica com filho até às 9, embarca para o trabalho, leva as crianças pra creche, volta, pega as crianças, vai, estuda um bocadinho, enquanto amamenta lê alguma coisa.

Lucia Rodrigues - A sua militância no PCB foi no movimento estudantil?
Foi no movimento estudantil secundarista. Pouco tempo depois eu me afastei, esse é um período em que o PCB começa a ser muito perseguido, foi na segunda metade dos anos 70, e quando começa também a mudar de perfil. Eu era bastante rebelde, não cabia muito bem, digamos assim, nos esquemas e me afastei, fiquei mais estudando. Passei uns 10 anos afastada da militância e mais estudando. Sempre fui muito estudiosa, então fiz a faculdade de História, depois o mestrado em História na Universidade Federal Fluminense e depois o doutorado na França com alguém que virou um grande amigo e que faleceu recentemente, que é o Georges Labica, que escreveu aquele livro que está saindo pela Editora Expressão Popular, que tem até uma introduçãozinha minha.

Marcos Zibordi - O que estudou no mestrado e doutorado?
História do Brasil Contemporâneo, Teoria da História e Marxismo, são áreas que eu trabalhei. Eu continuo nelas até hoje, só que eu acrescentei mais uma que é História Contemporânea. No mestrado eu fiz uma dissertação sobre a questão habitacional, na época do fim do Banco Nacional da Habitação. Depois no doutorado, na França, eu fiz uma tese sobre o pensamento democrático no Brasil, e agora sou pesquisadora do CNPq. Só para explicar o que eu estou fazendo há uns 10 anos, venho trabalhando muito intensamente com formação política no movimento social, principalmente com o MST. Aliás é uma das atividades da qual eu me orgulho, é a participação nos cursos que o MST consegue nas universidades e nos cursos da Escola Nacional Florestan Fernandes. Trabalhei muitos anos na Universidade Federal Fluminense, onde eu fui precocemente aposentada por engano da burocracia, não foi engano malvado, foi engano burro, mas me aposentaram.

Lucia Rodrigues - Como analisa a crise do Senado? Dá para dizer que é uma crise institucional ou é uma briga entre caciques que se desentenderam por vários motivos?
Eu diria que tem as duas coisas, os dois processos não estão separados. Se a gente for pensar em longo prazo, eu venho analisando isso da seguinte forma: a partir de 89, mais ou menos, a condição de que seja possível manter uma estrutura representativa tal como ela existe agora, depende de conseguir figuras públicas aparentemente limpas, figuras públicas que tenham uma trajetória, não só aparentemente limpas, mas que vêm de uma trajetória capaz de neutralizar os movimentos sociais, que é mais importante ainda do que o aparentemente limpas. Vamos lembrar um pouquinho pra trás que o Fernando Henrique Cardoso, quando foi candidato, veio de uma trajetória da esquerda, embora a gente já sabia que o FHC já tinha mudado esta trajetória, porém essa mudança ainda era incipiente, uma mudança inicial. Ninguém imaginava que o governo Fernando Henrique fosse, por exemplo, investir contra os petroleiros da maneira como investiu, isso era impensável, nem contra os direitos dos trabalhadores. Portanto, Fernando Henrique neutralizou uma parcela da intelectualidade de esquerda nessa ida dele para o governo, quem quis se iludir se iludiu, mas em parte achava que Fernando Henrique já vinha de uma associação com o PFL, a gente já sabia qual era a associação que estava feita no começo. Mesmo assim isso permitiu neutralizar setores de classe média incomodados com o processo, e alguns setores inclusive de movimentos, de um tipo de movimento social que é o que eu chamo da filantropia mercantilizada, que são movimentos que começam populares e vão se tornando pouco a pouco militância paga em entidades mais ou menos filantrópicas. É quando a questão das classes sociais no Brasil deixa de ser um problema de classe e começa a ser um problema de pobreza. Deixa de ser uma questão de luta comum e passa a ser uma questão de filantropia, um problema da pobretologia.

Renato Pompeu – E qual a ligação com o Senado?
Isso é para chegar ao Senado, né. O segundo movimento é o Lula, esse movimento é mais importante ainda. Se o FHC já cumpre esse papel de levar para o conjunto das instituições de representação política no Brasil uma espécie de aparência limpa, apesar do braço dado com o PFL, a eleição do Lula tem papel muito mais importante para estabilizar o chamado jogo burguês no Brasil, uma vez que ela consolida essa trajetória que já vinha sendo feita antes, mas agora com mais cacife, pois agora traz a CUT,traz uma parcela grande do PT, liquida politicamente o elo que este partido tinha com os movimentos de base, não só liquida o elo como converte essa ligação numa ligação adequada para o jogo político. Lógico que em todos os casos isso significa que há um adiamento das condições da crise institucional e há um mergulho desses partidos limpos, entre aspas, dessas pessoas limpas no mundo da representação razoavelmente falseada. Acho que isso é um problema grave. Eu discuti isso num artigo dizendo que o PT se deslocou do papel ético-político – que o Gramsci sugere – para o papel de definidor do que seria o papel moral, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. O resultado disso é que ele perdeu o horizonte ético, que era o horizonte principal e que devia estar ligado com os movimentos de base. Portanto eu acho que o problema do Senado é um problema estrutural nosso, primeiro nós temos uma estrutura representativa problemática, nós temos um sistema bicameral que é outro problema.

Lúcia Rodrigues - Você defende a extinção do Senado?
Eu não defendo a extinção do Senado instantaneamente. Do ponto de vista de uma transformação real da sociedade brasileira isso não virá através das instâncias eleitorais e nem das instâncias representativas. Nós já sabemos disso, já temos a experiência, já vimos o que foi eleger o PT e, sobretudo o Lula mais até que o PT, e ele simplesmente
se converter no mesmo, porque o jogo político é uma máquina de produzir o mesmo. Então a luta popular tem de saber que ela tem de se manter para além dos seus representantes, não ser subordinada à representação.

Renato Pompeu - Por que na Bolívia e na Venezuela foi possível surgirem governos transformadores a partir da luta eleitoral?
OK, eu vou chegar lá, deixa eu só terminar o nível do Senado por que eu acho que isso é uma coisa importante. É pra extinguir o Senado? A princípio eu acho que sim, eu acho que o Senado, para uma democracia representativa burguesa limitada, tal como ela é, o Senado não é necessário. É perfeitamente possível operar de forma unicameral, é menos não democrático, pois não chega a ser necessariamente mais democrático. O sistema bicameral é um sistema de controle de uma câmara alta que controla uma câmara baixa, a câmara que é mais representativa ela tem um papel menos importante, o filtro fica no Senado. Isso eu não estou fazendo uma campanha pelo fim do Senado, a campanha que eu faço é que os movimentos populares saibam que não vai ser via processo eleitoral que eles vão resolver. Agora a gente chega ao caso da Bolívia e da Venezuela: eu acho que tem uma diferença grande sim entre Brasil, Bolívia, Venezuela e Equador, uma diferença importantíssima que é o grau de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, e junto com o grau de desenvolvimento do capitalismo no Brasil a capacidade de organização burguesa brasileira. Acho que a gente não leva suficientemente em conta, nós vivemos num país que ao longo do século 20 foram proibidas e reprimidas na violência as formas de organização populares e dos setores dos trabalhadores, porém
foi estimulada, apoiada assegurada e garantida a associatividade empresarial.

Marcos Zibordi – O que isso significa?
Pra gente ter idéia do que isso significa, no Estado Novo foi proibida a livre associação quando o governo baixou o decreto do sindicalismo corporativista, o decreto também valia para todo sindicato patronal e de trabalhadores. Enquanto para os sindicatos de trabalhadores esta lei foi imposta a ferro e fogo, os sindicatos que tentaram se manter contra o corporativismo foram fechados e os seus sindicalistas perseguidos. Para o patronato isso nunca aconteceu e eles tinham placa na porta, eles tinham, têm, pois até hoje existem Fiesp e Ciesp, Firjam e Cirjam. Em suma, eles mantiveram uma dupla representação, uma que era oficial institucional e outra paralela, a paralela pode para eles. Então a gente tem aqui uma violência seletiva popular.

Hamilton Octavio de Souza - O que diferencia a situação brasileira?
A gente tem hoje uma forma de organização burguesa no Brasil que foi justamente capaz, a partir da década de 90, não apenas de atacar a espinha dorsal do movimento popular e do movimento dos trabalhadores na virada dos anos 80 para os anos 90,como em parte incorporar uma parcela destes movimentos. Isso que eu acho o mais dramático. Qual foi a estratégia que se usou para isso que nos distingue bastante da Venezuela e da Bolívia? A estratégia primeira foi a formação da Força Sindical, que foi a cunha que impôs à CUT uma adequação na massa. Essa foi a primeira, feita com o apoio patronal. A segunda foi o volume de demissões na década de 90. A terceira foi a precarização do trabalho como forma normal. E a quarta, que não é irrelevante e que tem a ver com o jogo político parlamentar, embora não apareça, foi exatamente o empresariamento das formas de organização difundidas no país, que na década de 90 dá um salto enorme com Fernando Henrique, é o salto das ONGs. A palavra ONG não explica tudo, eu tomo muito cuidado quando uso, porque ONG é um pedacinho das fundações e associações sem fins lucrativos, que, segundo o IBGE, são 340 mil no último censo feito em 2005. Tirando os sindicatos, tem mais de um milhão de trabalhadores nessas entidades, tem mais que o serviço federal todo, com salário
de mil reais em 2005. Nós temos uma rede hoje que é uma rede de organização burguesa. Portanto, diferentemente da Bolívia ou da Venezuela, onde não houve nenhum espaço de incorporação de nada, onde a burguesia local é uma burguesia pequena, restrita, uma burguesia com uma configuração bastante diferente da burguesia brasileira, eu diria que nós hoje estamos num país capitalista desenvolvido. É o que eu venho trabalhando. Um país capitalista desenvolvido significa que a burguesia tem meios, tem recursos, tanto de sedução quanto de violência, e eles usam os dois. A novidade é que o recurso de sedução cresceu muito, de convencimento, cresceu a
extensão das bolsas, a extensão dessa rede cultural associativa, é uma dimensão de convencimento quase capilar, isso está no cotidiano.
Lúcia Rodrigues - A crise do Senado é uma crise institucional?
O que vocês estão chamando de crise institucional? Não, em princípio, não. Ela é uma crise institucional no sentido histórico, sim. Historicamente esta instituição é uma instituição que formula problemas, e deste ponto de vista ela é uma crise da instituição. No sentido da população, o conjunto da população chama o Senado de pau de galinheiro, é uma coisa normal. Este tipo de crise no Brasil significa alteração da instituição? Até aqui nunca significou, ela é enésima dessas crises, nos já conhecemos essas crises. O dilema da questão da corrupção aparece como o mais grave porque é uma corrupção completamente institucionalizada, ela aparece como o mais grave exatamente porque o momento de incorporação política permitiria fazer sem gastar esse dinheiro da corrupção, e porque tem aí situações de disputas internas que são meramentes ileitorais, que estão em jogo agora, isto também é claríssimo. Embora a corrupção seja uma coisa corriqueira, não singnifica que eu perca de vista que exista uma questão absolutamente epidérmica de debate que agora está se acirrando, que é o processo eleitoral de 2010, e quem está atacando o Sarney são os aliados mais próximos de ontem e que serão seus aliados amanhã.
Marcos Zibordi - Essa crise toda é sobre as eleições de 2010?
Ela tem um nível real. O Senado brasileiro é um marketing eleitoral dramático, portanto, socialmente isso é sério. É institucionalmente pensando dessa forma e isso é sério. Do ponto de vista da lógica da vida interna da luta política dos caciques, não é nem dos oligarcas, é dos caciques da política, essa é uma briga absolutamente normal, eles fazem isso o tempo inteiro, eles jogam desse jeito. Acho que agora ficou mais claro.
Tatiana Merlino - O professor Chico de Oliveira acha que o que está por trás disso é que existe uma colonização da política pela economia, o que acha disso?
Estou inteiramente de acordo com o Chico. Bom, uma sociedade capitalista plena já uma sociedade na qual a economia parece fazer parta da nossa segunda pele, que a gente passa a viver como inovador, empresário, lucro, investimento, investimento amoroso etc. Já seria uma coisa mais ou menos normal. O que a gente imagina e sempre imaginou foi que a chegada do desenvolvimento capitalista fosse a chegada num mar de rosas. Bem vindo à realidade, a chegada ao capitalismo desenvolvido é apenas a chegada no paraíso do lucro. O período no qual foi possível aos trabalhadores de alguns países impor maiorias substantivas, acabou. Mesmo isto está sendo devastado e nós chegamos ao capitalismo desenvolvido sem que isso signifique que o conjunto da sociedade tenha uma melhora de qualidade substantiva garantida; também não significa que não tenha nenhuma melhora, tem porque a bolsa faz diferença.
Hamilton Octavio de Souza - Nesse capitalismo desenvolvido como fica o papel das oligarquias? Elas têm espaço? Estão presentes?
Acho que quem tem o melhor trabalho sobre isso é o Chico de Oliveira. Ainda o trabalho dele lá da década de 70, Crítica da Razão Dualista, onde é mais do que evidente que a ponta mais moderna da economia brasileira nutre, sustenta e recria a parte mais antiga. Então não tem um arcaico que sobrevive, o Sarney não é um cara que sobreviveu, o Sarney é um cara da Globo. O cara da Globo que neste momento não lhe é muito conveniente, então a Globo vai atacar o Sarny - e eu não vou estar defendendo o Lula porque é inimaginável essa associação desse tipo.
Marcos Zibordi - Será que é inimaginável?
Não. Inimaginável não é, é insustentável politicamente se nós pensarmos na emancipação dos trabalhadores e numa vida mais igualitária na garantia da educação, da saúde, do transporte, da alimentação e da habitação em condições dignas. Se não pensarmos numa vida digna, isso é entrar no jogo como eles definem que o jogo deve ser jogado. Então vão jogar numa hora contra, outra hora a favor, nada mais do que isso.
Hamilton Octavio de Souza - Por que o Brasil não consegue virar essas páginas do passado e entrar numa outra era?
Eu venho dizendo que entrou numa outra era. Uma coisa que de vez em quando eu paro para me perguntar é: esse avanço da capacidade de organização empresarial burguesa no Brasil significou que não são os seus candidatos que são os candidatos. O que fizeram não foi com os seus candidatos. O Fernando Henrique e o José Serra já não eram originalmente os seus candidatos muito mais adequados nesta geração de banqueiros construída nos dois mandatos FHC. Eram muito mais adequados, aparentemente, para isso. Porém, de fato o governo Lula foi muito mais adequado para essa passagem, você tem ao mesmo tempo uma manutenção dos grandes elos de controle mais eleitoral do que propriamente da economia. Mas o Sarney não é o cara que decide a economia, não é ele o decisor da economia, por alguma razão ele garante aos decisores da economia o controle de um determinado território, um controle elitoral, e enquanto ele for interessante para isso ele serve, se não for mais interessante para isso talvez não sirva mais. O Sarney está chegando perto do fim da carreira dele, quando os seus prepostos, aqueles que sempre lhe sustentaram, agora estão contre ele.
Lucia Rodrigues - Neste sentido o governo Lula não foi prejudicial ao avanço das lutas dos movimentos sociais, na medida em que controla o sindicalismo cutista que poderia estar na rua fazendo pressão no governo em determinadas questões pontuais da sociedade? Não é um retrocesso, neste sentido?
Sem dúvida. Do ponto de vista da auto-organização da população o governo Lula é um retrocesso. Do ponto de vista de uma melhoria epidérmica da condições da vida, a gente não pode dizer isso porque de fato seria falsear as condições reais. Porém, do ponto de vista de assegurar que a população seja capaz de defender os seus direitos, o governo Lula foi um mega retrocesso. Ele pode até ter melhorado condições aqui ou acolá, mas retirando as condições de luta pela garantia dos direitos.
Renato Pompeu - Voce disse que o Brasil pode ser considerado um país capitalista desenvolvido. Falou de desmantelamento da resistência dos trabalhadores. Será que no capitalismo desenvolvido não há o que fazer?
Não, ao contrário. A nossa responsabilidade é muito maior, o quadro é muito mais dramático, muito mais importante. Quando falo de capitalismo desenvolvido eu queria até mexer um pouquinho nisso para não dar ideia de que eu estou falando de alguma coisa linda. É de que nós temos uma burguesia organizada que lucra brutalmente a partir daqui de dentro associada com capitais multinacionais e multinacionalizada ela própria. Nós temos hoje um BNDES que financia mudança de escala e de exportação de capitais de empresas sediadas no Brasil, que são consideradas empresas brasileiras, qualquer que seja a origem nacional dos capitais. Primeiro, as condições hoje em que o Brasil chega, entre aspas, a esse grau de capitalismo desenvolvido, são condições de truculência de classe também, não são só de bolsa família. É bolsa família e caveirão, é PAC junto com caveirão, é PAC junto com assassinatos de jovens e, sobretudo, de jovens negros. Os meninos negros favelados são os alvos favoritos. É impressionante. Diminuiu um pouco essa violência, mas a violência continua brutal nas nossas grandes cidades, a guetificação continua, a separação dos bairros é dramática, brutal. Lógico que tem movimentos que resistem, o MST resiste, surpreendentemente resiste e eu fico satisfeitíssima.
Marcos Zibordi - Os movimentos sociais são hoje uma espécie de nova esquerda na América Latina?
Nova esquerda como? Por que nova esquerda quer dizer muita coisa. Alguns movimentos sim, outros não. Vamor por Gramsci que fica mais fácil. Uma sociedade capitalista desenvolvida é uma sociedade na qual o Estado se amplia, e na qual tanto a sociedade política, no sentido restrito, quanto a sociedade civil são âmbitos de luta de classes. É aí que nós estamos. Nós estamos na luta de classes em todos os lugares. A tendência é a de que se você consegue ter uma luta contra-hegemônica apareça mais claramente no conjunto das entidades da sociedade política. Se não tiver, o conjunto da sociedade política é a fase hegemônica, mas a luta está em todos os espaços, a luta está no terreno dos movimentos sociais e eles têm que saber disso, na emergência de alguns movimentos populares. A luta de classes é a luta contra o capital, é a luta pela igualdade. A massa da população brasileira é trabalhador hoje, e trabalhador urbana, mas a grande massa da população brasileira não se reconhece enquanto trabalhadora. Quem é que não trabalha? Aumentou o número de desempregados? Sim, aumentou o número de desempregados. O cara pode não ter contrato de trabalho, mas vive como? Vai vender AmBev no sinal e isso significa economia para a AmBev. Vai vender Nestlé, vai vender AmBev. São formas degradadas de trabalho, são formas de degradação da força de trabalho, mas são trabalho, e todos são trabalhadores.
Hamilton Octavio de Souza - No marco do capitalismo, a democracia no Brasil tem condições de avançar?
Toda democracia avança em função da capacidade de luta. Do ponto de vista do nosso processo histórico brasileiro com relação às formas de governo nós temos um avanço e consolidação da democracia, sem sombra de dúvida. Qual é o problema? O problema é que a democracia que se consolida não é a democracia do Brasil do século 21, mas do mundo do século 21, é uma democracia sem direitos, é uma democracia na qual a economia blindou todos os elementos de definição estratégica do país, estes não estão em jogo, todos os candidatos terão o mesmo programa para isso e vão variar no supérfluo, vão variar no tamanho da bolsa, vão variar na adjacência. Essa é a grande questão: a democracia se converte, ela é apresentada, eu leio O Globo religiosamente todo dia, ela é apresentada unicamente como estratégia de eleição, de representação e eleição.
*A historiadora, pesquisadora do CNPq, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense e professora visitante na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, no Rio de Janeiro, Virgínia Fontes tem realizado excelentes estudos e reflexões sobre o Estado, a democracia e o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Sua contribuição para a compreensão da realidade brasileira se expressa também nos cursos de formação política tanto nos espaços acadêmicos e universitários quanto nas frentes de luta dos movimentos sociais.
Reportagem por Bárbara Mengardo, Fernando Lavieri, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Marcos Zibordi, Renato Pompeu, Tatiana Merlino, Wagner Nabuco Fotos: Jesus Carlos

Para ler a entrevista completa e outras reportagens confira a edição de setembro da revista Caros Amigos, já nas bancas,
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