quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Negro, mulher, gay, e daí?

Martha Medeiros*
Hoje quase não assisto a novelas, mas quando elas são assinadas por Gilberto Braga ou Manoel Carlos, o sofá me chama. Foi esparramada nele que assisti ao primeiro capítulo de Viver a Vida, não porque teria a-primeira-protagonista-negra-de-uma-novela-das-oito, como exaustivamente anunciaram a presença de Taís Araújo no elenco, mas porque achei que iria me divertir, que é para o que servem as novelas. No entanto, em vez de me divertir, gelei ao ouvir uma frase da personagem de Lilia Cabral, que, conversando com a filha sobre o ex-marido, desdenhou: “Ele sempre trocou o vinho pela cerveja, o banquete pelo sanduíche, o restaurante pelo boteco, é natural que agora, recém-divorciado, troque uma branca por uma negra”.

Entendo perfeitamente que Manoel Carlos queira mostrar o quão hipócrita é essa história de dizer que no Brasil não existe racismo, e jogou essa bomba atômica já no primeiro capítulo para alertar que, fora de casa, as pessoas podem até ter aprendido que discriminação é crime, mas que intramuros, sem fiscalização e testemunhas, ainda se dizem barbaridades e se propaga o preconceito.
Em todo caso, me pergunto como seria se, em vez de “provocar reflexões”, simplesmente tratássemos nossa convivência com mais naturalidade. Ou seja: imagine se ninguém mencionasse que Taís Araújo é negra. Que ela fosse mocinha ou bandida sem que sua raça importasse para a sinopse da trama, da mesma forma que ninguém salienta que Aline Moraes é branca. Haveria quem detectasse aí uma perda de oportunidade para se discutir uma questão social importante do país, mas, na minha utópica inocência, creio que não estimular uma percepção diferenciada poderia fazer mais pela igualdade racial do que seguir martelando “o primeiro negro a fazer isso”, “a primeira mulher a fazer aquilo”, “o primeiro homossexual a conquistar tal coisa”. Aos poucos, ninguém mais repararia se é um negro, uma mulher ou um gay a vencer: seria uma pessoa como outra qualquer – como de fato é.
Esperar que não se mencionasse que Obama foi o primeiro presidente negro eleito nos Estados Unidos já seria inocência demais, ok. Mas é preciso continuar a falar disso? Se Dilma ou Marina se elegerem presidente do Brasil, não seria interessante que elas não entrassem para a História como as primeiras mulheres a ocupar tão honorável cargo, e sim tratá-las exatamente como se trataria o Serra ao assumir o posto?
Sempre tive esta fantasia: a de que, ao não evidenciarmos as diferenças de raça, sexo ou idade, ninguém faria grande distinção entre preto ou branco, mulher ou homem, jovem ou velho, e deixaria para perceber o que realmente importa: se é competente ou não, se é honesto ou desonesto, se é um liberal ou conservador, enfim, as variantes que realmente fazem uma sociedade avançar ou retroceder.Se Manoel Carlos não tivesse colocado aquela frase desagradável na boca da Lilia, eu não estaria aqui discutindo publicamente sobre racismo, eu sei. Mas já não acredito tanto no impacto das ações negativas, e sim das positivas: mostrar na TV pessoas de raças e sexos diferentes convivendo no mesmo universo, recebendo o mesmo tratamento e as mesmas oportunidades, conscientiza igual e não ofende ninguém.
*Escritora. Cronista da ZH.
ZH, 23/09/2009

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