sábado, 26 de setembro de 2009

"O animal humano precisa de descanso"

Para o filósofo e escritor suíço,
a rotina que vivemos hoje é dura demais
para a maioria das pessoas

O filósofo suíço radicado em Londres Alain de Botton é herdeiro de uma grande fortuna. Mas, no início dos anos 90, por um desses caprichos que os milionários costumam ter, decidiu não usar o dinheiro da família e viver apenas dos ganhos que teria como escritor. Hoje, pode se gabar de ter alcançado seu objetivo. De Botton ajudou a popularizar a filosofia e a divulgar seu uso na vida cotidiana. Vários dos nove livros que escreveu, sobre temas que vão do amor à arquitetura e à arte de viajar, tornaram-se best-sellers. Nesta entrevista, ele fala sobre os prazeres e desprazeres do trabalho, tema de seu último livro, recém-lançado no país. Segundo De Botton, as pessoas trabalham hoje mais que nunca e vivem uma rotina difícil de administrar. “O animal humano precisa de descanso”, diz.
ÉPOCA – É possível ser feliz no trabalho?
Alain de Botton – Sim, assim como é possível ser feliz no amor. Todos nós conhecemos pessoas que têm relacionamentos maravilhosos. Conhecemos também pessoas que têm trabalhos maravilhosos. Elas amam o que fazem. Mas é uma minoria. Para a maior parte das pessoas, algo está errado. Pode ser que, em algum momento, as coisas tenham ido bem, mas depois elas acabaram perdendo o interesse no trabalho. Pode ser que as coisas nunca tenham ido bem para elas. Pode ser que exista algo que elas queiram muito fazer, mas não saibam direito o que é. Ou pode ser que elas saibam o que é, mas seja algo difícil de ser alcançado. A ideia de que todos podemos ser felizes no trabalho é bonita. Mas, no atual estado da economia, da política e até da psicologia, isso é impossível.

ÉPOCA – Por que é tão difícil ser feliz no trabalho?
De Botton – Por diversas razões. Pode ser muito difícil saber o que você quer fazer com sua vida. Existe gente que diz “eu quero fazer algo para ajudar outras pessoas”, mas não sabe exatamente o que fazer, nem como fazer isso. Outras pessoas dizem “quero fazer algo criativo”, mas também não sabem como. Há certo mistério para conseguir o que queremos. Há também muitos obstáculos. Qualquer empreendedor, ao abrir seu negócio, terá de superar a inércia do mercado para se estabelecer. Um indivíduo que entrou num novo emprego enfrenta um problema parecido para mostrar ao mundo que ele existe. É uma tarefa difícil, em qualquer ramo de atividade. É sempre algo extraordinário quando alguém ama o que faz – e é bonito ver isso acontecer.

ÉPOCA – O que podemos fazer para ser mais felizes no trabalho?
De Botton – Há muitas formas. Acho que o sistema de educação, em qualquer lugar, não é dirigido para aproveitar os talentos das pessoas. No início do século XXI, ainda não estamos aproveitando o lado mais interessante, mais energético, mais vivo e mais especial de cada pessoa. Precisamos desenvolver um sistema educacional melhor nesse aspecto. Precisamos também encontrar um sistema econômico que nos dê a oportunidade de mostrar o que temos de especial. Em qualquer empresa de grande porte, 80% das pessoas usam só metade de sua capacidade. A outra metade não está envolvida no que faz. Falamos muito hoje em dia sobre o desperdício de recursos naturais preciosos, como o petróleo e a água. Mas falamos pouco sobre o desperdício do recurso mais precioso, que é o ser humano.

ÉPOCA – A felicidade no trabalho depende do tipo de atividade?
De Botton – De forma geral, há muitos tipos de trabalho que, vistos de fora, podem nos levar a pensar que não há como alguém gostar daquilo. Mas, se você estudá-los de perto, verá que estão conectados com várias coisas interessantes. Um contador, por exemplo, faz um trabalho considerado chato, repetitivo. Isso não é realmente verdade. Quando a gente vê alguém fazendo bem seu trabalho, colocando o coração no trabalho, há algo bonito e interessante ali.

ÉPOCA – Em que medida a preguiça e o ócio se opõem à nossa necessidade de trabalhar para sobreviver?
De Botton – As pessoas trabalham mais hoje do que jamais trabalharam. Temos a impressão de que vivemos numa era com maior lazer, em que as pessoas estão tirando férias mais longas. Na Idade Média, nos séculos XIII e XIV na Inglaterra, a maior parte das pessoas trabalhava até ganhar o dinheiro de que precisava para sobreviver e depois parava para desfrutar o que conseguira. Só voltava a trabalhar quando o dinheiro acabava. Na era industrial, as pessoas começaram a cumprir jornadas regulares. Mas é muito difícil para o animal humano trabalhar das 8 horas às 18 horas. É uma rotina muito dura para a maioria das pessoas. É uma rotina pouco produtiva, porque ninguém consegue fazer um trabalho bem dessa forma. Não é que as pessoas sejam preguiçosas, mas o animal humano precisa de descanso. O animal humano precisa de uma “siesta”.

ÉPOCA – A gente trabalha, então, só para sobreviver?
De Botton – Não, trabalhamos por várias razões que não têm nada a ver com dinheiro. Quando você encontra alguém pela primeira vez, sempre pergunta “o que você faz?”. Hoje, a identidade das pessoas é muito vinculada ao trabalho. Você é o que você faz. Muitas vezes, uma mãe que está fora do mercado de trabalho diz “eu não estou fazendo nada”, quando alguém lhe pergunta o que faz. Isso é estranho. Quem já viu uma mãe com duas crianças pequenas sabe o que isso significa. Mas nós não reconhecemos o trabalho sem dinheiro. Praticamente não reconhecemos a identidade das pessoas fora do trabalho. No passado, as pessoas perguntavam: “De onde você vem?”, “Quem são seus pais?”. Hoje, o que importa é o trabalho. É por isso que o desemprego é tão difícil para as pessoas. Não é falta de dinheiro. É falta de identidade, de status.
“Nós temos a impressão de que vivemos numa era com mais lazer. Mas hoje as pessoas estão trabalhando mais do que nunca”

ÉPOCA – Em que medida a especialização torna mais difícil ser feliz no trabalho?
De Botton – A especialização é excelente do ponto de vista econômico. Quanto mais especializado for o trabalho, melhor. O problema é que ele torna mais difícil as pessoas se conectarem com o propósito maior de seus trabalhos. Se seu trabalho for escrever o texto da embalagem de um biscoito, você perde a ideia do que significa comer o biscoito. Nos velhos tempos, você podia ser um padeiro ou ter sua loja e fazer seus biscoitos de manhã para vendê-los à tarde. Nas grandes organizações, o indivíduo se perde facilmente. A consciência sobre o que a organização produz também pode se perder com facilidade.

ÉPOCA – No livro, o senhor conta a história de dez trabalhadores de diferentes ramos de atividade, mas não há um capítulo com as conclusões. Há lições a tirar?
De Botton – Eu fiz isso de forma deliberada, porque não é um livro teórico, é mais impressionista. Mas posso realçar alguns temas. Acredito que o trabalho seja uma forma de nos manter distantes do pânico trazido pela ideia da morte. Provavelmente, o que fazemos hoje não terá utilidade em algumas dezenas ou centenas de anos. Mas nos persuadimos da importância do que fazemos. Isso é necessário para nos dar energia e nos distrair do perigo sempre presente da morte. Eu também estava muito interessado na questão da motivação. Antigamente, se você quisesse motivar os trabalhadores, precisaria apenas de um chicote. Hoje, isso não funciona. As empresas fazem manobras mirabolantes para tentar motivar as pessoas. A mais famosa é a invenção do departamento de Recursos Humanos. Não que as empresas adorem seus funcionários mais do que os capatazes gostavam dos escravos. Apenas se deram conta de que, se quiserem que realizem certas tarefas, precisam adotar certas políticas.

ÉPOCA – O senhor nunca trabalhou em uma empresa. Essa experiência não faz falta para escrever sobre o trabalho?
De Botton – Por definição, um escritor só pode ter experiências em certas áreas. O desafio para ser um escritor é incorporar a vida de outros, de forma imaginativa, quase sempre com base em muita pesquisa. Os leitores é que devem decidir se o fato de eu não ter trabalhado num escritório de contabilidade significa que não posso escrever sobre contadores.

ÉPOCA – Quando seu livro foi lançado nos Estados Unidos, o senhor respondeu de forma grosseira a uma crítica do New York Times. O que o incomodou tanto?
De Botton – Para lidar com os críticos, é preciso ter uma calma budista e deixar tudo passar. É um grande erro responder a um crítico. Se você escrever uma resposta, eles vão publicá-la, e tudo o mais. Como escritor, você deve esperar que os leitores encontrem seu trabalho e respondam a ele de forma pessoal.

ÉPOCA – Isso significa que, se pudesse voltar no tempo, o senhor não responderia ao crítico do New York Times?
De Botton – Exatamente.
QUEM É
Escritor suíço radicado em Londres, de 39 anos, é conhecido por popularizar a filosofia. É casado e tem dois filhos
ONDE ESTUDOU
Formou-se em história e filosofia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Fez o mestrado em filosofia no King’s College, de Londres
O QUE PUBLICOU
Escreveu nove livros sobre temas que variam do amor à arte de viajar e à arquitetura. O mais recente é Os prazeres e desprazeres do trabalho (Ed. Rocco)
Reportagem de JOSÉ FUCS - Revista ÉPOCA -24-09-2009

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