domingo, 20 de setembro de 2009

Radiografia de um presidente

Carlos Alberto Di Franco
Acabo de regressar da Europa. Lá, como cá, o prestígio de Lula está nas alturas. Poucos líderes mundiais podem se orgulhar de uma presença midiática tão expressiva. O itinerário do metalúrgico que chegou à presidência é, para os europeus, um passaporte para a celebridade. Poucos são capazes de reconhecer que o sucesso de Lula, para além de seus méritos pessoais, é o resultado dos sólidos fundamentos econômicos plantados por seu antecessor. Para a velha Europa, cansada das antigas lideranças, Lula é o cara. E ponto final.
Não durmo nos aviões. Minha insônia aérea só é suportada com o lenitivo de um bom livro. E foi o que fiz. Dicionário Lula, um presidente exposto por suas próprias palavras, lançamento da Editora Nova Fronteira, é um livro revelador.
Um Lula surpreendente, para adeptos e opositores, é o que emerge do novo livro do jornalista Ali Kamel. Utilizando de forma inédita um método de análise de conteúdo, Kamel pesquisou todos os discursos do presidente improvisados no todo ou em parte, todas as suas entrevistas e todos os programas Café com o Presidente nos períodos de janeiro de 2003 a maio de 2008 e de setembro de 2008 a março de 2009. Com a ajuda de dois softwares, um criado especialmente para o livro, Kamel pôde analisar que palavras Lula mais utiliza, de que forma e em que quantidade, com precisão matemática.
“Lula é coerente ao longo do tempo? Lula tem, sobre um mesmo tema, ideias opostas dependendo do público para quem está discursando? Ele se sente confortável diante do capitalismo ou se mostra como um socialista de carteirinha? Em que se apoiam as suas opiniões, avaliações, conceitos, conclusões, afirmativas, certezas? Ou ainda: há alguma base de onde tudo isso parte? Quais são as suas formas de construir um discurso e de comunicar esse mesmo discurso?”
“O Lula que emerge destas páginas é um comunicador sem igual; um homem que vê o mundo a partir de sua experiência concreta de vida, de uma maneira que salta aos olhos; coerente, mas com incoerências importantes; um cidadão que preza os valores tradicionais da família e de Deus; um filho legítimo do capitalismo que almeja para os outros a mobilidade social que conseguiu para si (quando se tornou torneiro mecânico); um conciliador, cujo objetivo, ao menos no nível da retórica, é alcançar a harmonia entre os polos extremos da sociedade, tendo, para isso, como principal instrumento, políticas assistencialistas.”
Kamel conclui: “Muito longe do estereótipo do líder da esquerda operária tradicional — geralmente ateu, arauto de um novo homem, advogado da reestruturação da família em novos moldes, proponente de um regime político-econômico em que haja supremacia dos trabalhadores em relação aos patrões —, Lula acaba exposto, por suas próprias palavras, como um brasileiro médio mais ou menos crente em Deus, defensor do modelo tradicional de família e que se vê como o proponente de uma sociedade capitalista onde haja mais harmonia entre pobres e ricos”.
Lula é, sem dúvida, um animal político e um grande comunicador. Sua história de vida, carregada de carências e sofrimento, enrijeceu sua personalidade e o transformou num homem decidido a vencer a qualquer preço. Mas é precisamente na têmpera da sua obstinação que reside a sua maior fragilidade ética. O projeto de poder de Lula não admite barreiras éticas. Em nome da governabilidade e da perpetuação no poder, Lula se aliou ao que de pior existe na vida pública brasileira. A relativização dos valores e a condescendência com os companheiros e aliados envolvidos em graves irregularidades virou rotina na fala presidencial.
O presidente Lula tem méritos indiscutíveis. Iniciou o resgate da dívida social, foi prudente na condução da economia e deu ao Brasil, pela força de seu carisma e pelos bons ventos que sopraram nos seus mandatos, grande prestígio internacional e notável popularidade interna. Além disso, ao contrário de seus colegas, não entrou no desvio do terceiro mandato. Na reta final de seu governo, tão carregado de força simbólica, o presidente bem poderia encarar a recuperação da ética. Impossível? Talvez. Mas no crepúsculo do governo, feitas as contas, começa a pesar o legado para a história.
*Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, é diretor da Di Franco – Consultoria em Estratégia de Mídia.
Postado no CORREIO POPULAR, 20/09/2009
http://cpopular.cosmo.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1653302&area=2190&authent=1B8F802028D992231DB8B2104BAAB1

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