quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Nietzsche e o 'além do homem'

Lucas dos Reis Martins*
Friedrich Nietzsche é um dos maiores e mais notáveis pensadores dos últimos tempos. Infelizmente, também é conhecido por ser um dos mais injustiçados pelos seus eventuais leitores. Há um consenso entre os estudiosos de Nietzsche de que super-homem não é uma boa escolha para traduzir Übermensch. Inclusive, é uma escolha com consequências trágicas e desastrosas. O sentido de super-homem está mais ligado à figura do último homem (letzte Mensch) em Nietzsche. Uma tradução de Übermensch coerente com o pensamento nietzscheano é “além do homem”, como deixa claro o próprio Nietzsche: “O homem é algo que deve ser superado!”. (Assim falou Zaratustra). Superado, ultrapassado, não um homem potencializado, um super-homem, mas sim algo além do meramente humano.
Nietzsche preocupa-se com o verdadeiro problema trágico da modernidade, o niilismo (a desvalorização, a mediocrização que transforma o homem em animal de rebanho). Para o filósofo alemão, o cristianismo é o maior responsável por essa mediocrização, na medida em que sua interpretação da realidade desvaloriza a vida terrena em prol de uma vida mais verdadeira em um além. O que é o último homem? “Chega o tempo do mais desprezível dos homens, que não pode mais desprezar a si próprio. Vejam! Mostro-lhes o último homem. (...) A terra se tornou pequena então, e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno”. Os últimos homens vivem uma existência amansada, controlável, previsível, são indivíduos espiritualmente castrados, animais de rebanho em uma sociedade de massas. “São corretos, leais e benévolos uns para com os outros, como são corretos, leais e benévolos entre si os grãos de areia”.
Mussolini e Hitler não são mais que protótipos da política dos últimos homens. A grande intuição de Nietzsche foi apontar que a Europa caminhava para um abismo niilista. As grandes guerras constataram sua profecia negra: a redução do valor do homem a zero. O fascismo seria o exemplo mais escancarado dessa desvalorização do homem. Entretanto, as diferentes teorias políticas do Ocidente não passariam de variações superficiais de um mesmo princípio: nivelar, equalizar e apequenar a existência humana. Os campos de concentração não são resultados dos escritos de Nietzsche acerca do “além do homem”, muito pelo contrário, são exemplos cruéis de sua preocupação com a desvalorização da vida humana na sociedade dos últimos homens.
A aproximação de Nietzsche com o fascismo é fruto de leituras errôneas e mal-intencionadas com consequências desastrosas. Se, nos anos 30, os maus leitores calçavam coturnos, é com tristeza que constatamos, nos dias atuais, que ainda existem maus leitores de Nietzsche, só que alguns destes vestem toga e não perdem uma oportunidade de defender princípios cristãos e levantar críticas contra o laicismo. Se a aproximação de Nietzsche com o nazismo é irresponsável, não podemos dizer o mesmo da relação da Igreja Católica com Hitler. O acordo entre a Santa Sé e a Alemanha (1933) foi o ápice de negociações que ajudaram a ascensão de Hitler ao poder (sobre: The Vatican in World Politics, de Avro Manhattan). A preocupação com os Vermelhos, os comunistas, seus terríveis inimigos seculares, cegou a Igreja de tal forma que ela contribuiu para que Hitler chegasse ao poder, alguém que garantiria que a influência vermelha fosse banida da Alemanha. Não é a ingenuidade que leva muitos intelectuais a ver com maus olhos e grande preocupação a concordata da Santa Sé com o Brasil.
Assim como Nietzsche conclama os filósofos do futuro para uma guerra de espíritos, para fazer frente ao problema da estagnação niilista, mais relevante do que nunca na cultura de massas midiatizadas e mediocrizantes em que vivemos, devemos ouvir a voz do grande escritor José Saramago, que nada tem de revolta adolescente (ou “adultecente”, como preferem alguns clérigos), e apontarmos as armas da “insolência da inteligência viva, do bom senso, da palavra responsável” contra toda e qualquer massificação e rebaixamento do homem.
*Lucas dos Reis Martins é mestre em Filosofia pela Unicamp -

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