sábado, 24 de outubro de 2009

O homem é um fim, não um meio


Alberto Barlocci*


O doutor Justo Zanier me recebe em sua casa de Mar del Plata. O tratamento é gentil e cordial. Diretor do Programa de Bioética da Universidade Nacional de Mar del Plata e presidente da Associação de Genética Humana dessa cidade, adverte-se nele a preocupação d e um cientista diante de um tema crucial. "Hoje a bioética está sendo utilizada para aspectos formais, quase como se os comitês de bioética tivessem que avalizar procedimentos, mas não tem a importância que merece", confessa.
Em que campo se desenvolve a genética?
A genética estuda os elos que conformam a corrente da vida. Quando um elo se corta por alguma causa ocorrem alterações. E a genética médica estuda essas alterações: a origem e a causa de muitas doenças que até ontem eram desconhecidas. Com os avanços da genética molecular, pode-se diagnosticar a maior parte das doenças. No entanto, ainda podemos fazer pouco no plano terapêutico. De qualquer jeito, a medicina do futuro passará pela reparação das alterações genéticas.
O que é novo em genética médica?
Levamos escrito em nossas células como se desenvolverá a vida embrionária, como um óvulo se transformará em uma criança, com milhões de células diferenciadas entre si, com parecidos aos pais e também com diferenças. Sem esquecer que também influem múltiplos fatores desde que somos concebidos até a morte, como o médio ambiente, a cultura, a educação… Muitas doenças se devem a transtornos de informação genética mas a terapêutica com freqüência entra num terreno que é eticamente questionável, principalmente para os que têm uma determinada concepção antropológica.
Que precauções evitariam manipulações abusivas neste campo?
Sempre há manipulação; a questão é saber o resultado final. Cada vez é mais necessário, antes de qualquer tipo de operação, contar com o consentimento de um comitê de bioética com pessoas experientes.
Para isso é necessário um marco legislativo a fim de controlar os excessos, como os de laboratórios de cosmética que usam fetos…
São aberrações. O Estado deve ter organismos de controle e supervisão e um Comitê de Etica. Dá-se pouca importância, em geral: basta pensar que a lei prevê que em todos os hospitais haja um comitê de bioética, mas seus membros não recebem um centavo, mas mesmo assim há pessoas que se comprometem.
Há muitos leques nos diagnósticos pré-natais. Em que eles nos ajudam?
O casal que pede um diagnóstico pré-natal o faz para saber que tipo de criança terá. Se for normal, a mãe terá uma gravidez calma e poderá desfrutar esse tempo até o parto. Se o menino for anormal, o diagnóstico serve para que o casal se prepare. No momento do parto não sofrerão a surpresa nem uma tragédia. Por exemplo, no caso de um garoto com síndrome de Down é muito importante para a reabilitação, porque de alguma maneira já foi aceito. Em outros países –aqui não temos essa lei– opta-se pelo aborto. Eu não estou de acordo. Também depende muito de quem assessora o casal e como se dá a informação genética. Deve-se privilegiar a autonomia do paciente, apresentar os pró e os contras de todas as coisas. Em minha experiência, na maioria dos casos não se opta pelo aborto.
Como cientista, qual é o argumento que o define contra o aborto?
Creio que começa pelo aborto e logo termina em Auschwitz. É o primeiro passo que abre a comporta. Logo se argumentará que é alguém que está em coma, que não tem consciência; depois que é um deficiente mental e assim sempre haverá razões para que tentem justificar atentado contra a vida. A vida não nos pertence, é algo que deve ser respeitado em todos os sentidos.
Para a ciência quando é que começa a vida?
Desde o momento em que se une o espermatozóide com o óvulo, na concepção. A pergunta que vem a seguir é: em que momento começa a pessoa? Eu creio que é a mesma coisa. É uma pessoa em potencial. Outros afirmam que a pessoa começa aos quatorze dias, quando ocorre a implantação ou quando já passou o momento em que pode dividir-se e não há possibilidades de gemelaridade ; outros atendem ao primeiro cordão do sistema nervoso; outros no momento do nascimento… Trata-se de algo que pertence ao campo da fé ou da filosofia. No entanto, nem todos os casos são iguais. Os fetos anencefálicos não têm cérebro; não há nenhuma possibilidade de sobrevivência. Estão vivos porque estão dentro do seio materno, mas quando nascem morrem em menos de duas horas. A discussão nesse caso é: se a mãe não quiser ter, trata-se de um aborto? Minha posição é que se a mãe quer extrair a criança porque afeta sua saúde mental, creio que prevalece o critério dela acima do da criança, que não tem nenhuma possibilidade. A discussão com os legisladores, com os juízes, continua em curso e é importante para a bioética.
Quanto ao patrimônio genético de uma pessoa, fala-se do direito a saber e não saber. De que se trata?
O direito a saber e não saber é muito importante. E o dilema reside em quanta hierarquia tem o direito a não saber se o paciente tiver uma doença hereditária que pode ser transmitida aos filhos. Então existe o direito dos que vão vir, antes que o direito do paciente. É o jogo das prioridades, sempre presente na discussão bioética. Se alguém tem um câncer e não quer saber, e não se transmite nem é hereditário, não tenho necessidade de contar para a pessoa o mau que padece. Em todo caso, será comunicado para algum familiar.
Também está o direito à reserva.
Isso sempre: o segredo médico tem a ver com a privacidade dos pacientes. É um princípio básico que qualquer médico deve cumprir, e que atualmente também não se cuida. Se você tiver uma mutual, verá que no pedido de análise se põe a presunção diagnóstica. Isso vai parar nas mãos de um empregado administrativo, e muitas vezes devemos tergiversar as coisas para preservar o direito à intimidade.
Pode haver casos de discriminação originados pela divulgação da informação do patrimônio genético?
Sim. O tema deveria ser legislado porque a informação genética é privada. A informação que vai para os bancos de dados genéticos deveria estar em mãos do Estado e nunca de particulares. Em compensação, no caso de violadores condenados, estou de acordo com a criação de bancos de dados com os antecedentes, a fim de identificar os delinquentes.
Qual é a contribuição da genética ou dos estudos de DNA no esclarecimento de delitos?
Trabalhamos em casos de homicídios, violações…A genética é uma ferramenta poderosa porque permite reconstituir a árvore, o genoma do suposto autor do delito. A informação vai para um único banco de dados no Hospital Durand. A prova de DNA tem uma confiabilidad acima de 99%. É irrefutável. Embora seja o juiz quem decide, trata-se de uma prova que ninguém se atreve a descartar. Um membro das Forças Armadas foi acusado por uma mulher de violação, mas havia sido um bode expiatório da Polícia porque o estudo genético foi feito e não era o culpado.
Diante do avanço tão importante destas técnicas, não existe o risco de levar adiante certas iniciativas só porque é possível realizá-las, sem importar se são boas ou más?
… Ou porque correspondem a fins econômicos. Por isso é necessário que toda pesquisa seja aprovada pelos comitês de bioética, que determinam como preservar as pessoas. Aqui houve experiências estrangeiras nas quais tiraram sangue de comunidades indígenas, para analisarem por que tinham imunidade a determinadas doenças e eles nunca receberam nenhuma informação. O ser humano não é um meio, é um fim.
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*Alberto Barlocci. Diretor da revista Ciudad Nueva, www.ciudadnueva.org.ar -Acesso 24/10/2009 em Mirada Blobal. com

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