sexta-feira, 30 de outubro de 2009

A pílula da inteligência



Já existem medicamentos capazes de
turbinar o cérebro
 - para você pensar,
estudar e
trabalhar mais e melhor.
Mas até que ponto é seguro tomá-los?

“EU tinhas que preparar para um trabalho e resolvi tomar um comprimido. O resultado foi incrível. Consegui estudar 12 horas sem parar”.
“Era uma época agitada na minha vida. Eu fazia faculdade de direito, trabalhava num escritório e ainda estudava para concursos públicos. Comecei a usar um remédio que o neurologista havia recebido para a minha tia. Não tive nenhum efeito colateral e senti um belo aumento na minha concentração. Na época das provas, eu aumentava a dose.”
“Fiquei mais inteligente, tudo o que estudo é mais bem aproveitado. Graças ao remédio, passei no vestibular de química e virei um dos melhores alunos da classe. Agora decidi prestar vestibular para economia. Consegui uma bolsa em um cursinho depois de fica em 1º e 2º lugar em vários simulados. Tenho consciência de que outros estudantes também usam o remédio. Mas espero que ele não se popularize. Afinal, se todo mundo tomar como vou me destacar?”
Esses relatos são reais. São os depoimentos de Augusto (26 anos, doutorando, Recife), Henrique (25 anos, advogado, Brasília) e Marcos (21, estudante, Rio de Janeiro). Eles são pessoas normais, sem nenhum problema de cérebro. Mas decidiram tomar medicamentos tarja-preta, desenvolvidos para tratar disfunções neurológicas – mas que, em pessoas saudáveis, podem provocar uma espécie de turbo mental: intensificar a atenção, a concentração, a memória ou certos tipos de raciocínio. Ou simplesmente ajudar a pensar mais, por mais tempo, sem cansar. E quem não quer isso, afinal? Um estudo recém-publicado no jornal científico Nature revela que 25% dos universitários tomam ou tomaram algum tipo de remédio para tentar aumentar seu desempenho congnitivo. E uma nova geração de medicamentos, supostamente mais segura, acendeu de vez o interesse pelas pílulas da inteligência – que cada vez mais médicos, executivos e até cientistas estão tomando. Tanto é que um grupo de neurologistas das Universidades de Califórnia da Pensilvânia, de Cambridge e Harvard escreveu um manifesto explosivo, que está dividindo a comunidade científica. Ele defende que certos medicamentos, que hoje são tarja-preta (de vendas e uso controlados), sejam totalmente liberados – para que todo mundo possa tomá-los e aumentar o próprio QI. “A engenhosidade humana nos deu meios de aprimorar nosso cérebro, com invenções como a escrita, a imprensa e a internet. Essas drogas deveriam se encaradas da mesma forma: são coisas que a nossa espécie inventou para melhorar a si mesma”, afirmam os cientistas. Loucura?
Talvez. Mas a verdade é que a maior parte das pessoas já consome substâncias para turbinar a cabeça. Quando você toma uma xícara de café para ficar mais ligado, está ingerindo cafeína – e, com isso, provocando alterações nos próprio cérebro. Se acorda doente e toma um antigripal para trabalhar melhor, idem (vários remédios do tipo contém um estimulante, fenilefrina). E tudo isso é plenamente aceito pela sociedade. Pode ser que, no futuro, as pílulas da inteligência sejam consideradas tão corriqueiras e inofensivas quanto um cafezinho.

MENOS BARATO E MAIS COGNIÇÃO

Fim dos anos 70. Um laboratório francês começa a procurar soluções para a narcolepsia, um distúrbio que causa sonolência excessiva durante o dia e afeta 0,2 a 0,5% da população mundial. Depois de muitos anos de pesquisa, os cientistas chegam a uma droga promissora, que aparentemente não tem os efeitos colaterais dos outros tratamentos. Ninguém sabe exatamente como ela funciona ( parece alterar os níveis de vários neurotransmissores, como dopamina, serotonina e noradrenalina, e com isso facilitar a comunicação entre os neurônios), mas o fato é que funciona. E o melhor: não provoca euforia, não dá barato e não vicia – os grandes problemas dos remédios até então em usados para tratar a narcolepsia. O novo medicamento é batizado de modafinil e lançado na França em 1994. Logo atrai o interesse dos militares. O Exército francês, e depois o americano, começaram a testar o remédio. O objetivo não é criar uma safra de guerreiros superinteligentes – é simplesmente evitar que durmam. E funciona. “ O modafinil permite que indivíduos saudáveis fiquem acordados por mais de 60 horas, sem efeitos colaterais”, conclui um estudo do governo francês, imagine só. Um soldado que consegue ficar quase três dias sem dormir, sem nenhuma perda de desempenho mental. Ideal para a guerra. E o modafinil foi se espalhando. Hoje, ele é distribuído de forma rotineira aos militares americanos (principalmente pilotos da aeronáutica e soldados que precisam trabalhar durante a noite).
Com tanta popularidade, a droga começa a atrair a atenção dos cientistas civis. Em 2003, pesquisadores da Universidade de Cambridge decidem testar o remédio em 60 voluntários saudáveis e descansados. E descobrem um efeito surpreendente. Sob efeito da droga, eles tiveram desempenho bem melhor em alguns testes cognitivos. Ou seja: tecnicamente, o remédio fez com que os voluntários ficassem mais inteligentes. Eles se sentiram muito bem e não sofreram nenhum efeito colateral. Um remédio seguro, que não tem consequências ruins e melhora o funcionamento do cérebro?
Foi o suficiente para explodir o interesse no modafinil, que começou a ser apresentado pelo fabricante ( a empresa americana Cephalon, que comprou o remédio dos cientistas franceses) como uma solução para quem vive cansado e deseja ter mais energia no dia-a-dia – o laboratório tentou aprovar sua droga até como remédio para jet lag. Essa ofensiva de marketing foi considerada irresponsável pelo governo americano, que aplicou uma multa milionária no laboratório. Mas isso não foi o suficiente para brecar a mania da modafinil, cujas vendas quintuplicaram e bateram um US$ 1 bilhão anuais. E isso só nos EUA, sem contar os outros países (entre eles o Brasil, onde a droga foi lançada este ano).
Apesar de tudo esse entusiasmo – ou exatamente por causa dele –, você deve estar se fazendo algumas perguntas. Será que, com o uso contínuo, a longo prazo, drogas como a modafinil não podem fazer mal? E será que é uma boa ideia mexer com a química do cérebro? Muitos cientistas têm levantado essas questões, ainda sem respostas definitivas. Quem toma remédios para turbinar a própria cabeça está assumindo um risco sério. Mas não é difícil entender por que cada vez mais pessoas fazem isso. Afinal, a busca por substâncias capazes de nos tornar mais espertos é um sonho que se perde na noite dos tempos. Sem exagero: desde que a civilização existe, tem gente querendo melhorar seu desempenho intelectual.
Veja o caso dos soldados do Império Romano, por exemplo. Eles comiam alho puro, porque acreditavam que lhes dava inspiração (sem falar na prova de coragem que devia ser comer aquilo). Entre outros povos, o costume era beber cerveja – sim, cerveja! – na expectativa de que o álcool conferisse aos soldados a bravura necessária para combater. Conforme a química evoluiu como ciência, as drogas foram se sofisticando. E os intelectuais, caindo nelas. No século 16, o famoso filósofo Francis Bacon admitidamente consumia uma série de produtos – de tabaco a açafrão – na expectativa de tornar a mente mais afiada. O escritor Honoré de Balzac, o início do século 19, tomava café aos montes para produzir, porque a bebida “afasta o sono e nos dá a capacidade de nos manter por mais tempo no exercício de nosso intelecto”. E Sigmund Freud acreditava que a cocaína pudesse ser um poderoso auxílio para a mente. Mas os estimulantes só entraram na era moderna em 1929, quando o químico Gordon Alles introduziu o uso médico das anfetaminas (para tratar asma e bronquite). Na 2ª Guerra Mundial, elas já tinham feito a cabeça das pessoas – tanto os nazistas quantos os aliados distribuíam a droga a seus soldados no front. Deve ter sido, além de a mais violenta, a guerra mais insone e neurótica de todos os tempos. Afinal, como você já dever ouvido falar, as anfetaminas são estimulantes fortíssimos – e tão viciantes quanto as piores drogas ilegais.
Excerto da reportagem de Salvador Nogueira - Revista SUPERINTERESSANTE, Ed.271 - Nov/2009, pp.63-71

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