domingo, 18 de outubro de 2009

Querida Marina...

Rubem Alves*

Meu coração se inclina para os fracos. Admiro aqueles que, por amor a um ideal, são capazes de lutar contra os gigantes. É o caso da Marina, que aparece como uma estrela no escuro horizonte político do País. Os realistas dirão que é impossível derrotar os gigantes e que é tolo lutar contra eles. Mas eu prefiro a companhia dos poetas. Esse poeminha do Mário Quintana entitulado Das Utopias faz qualquer um sorrir: “Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não quere-las... Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas.”
E esse curtíssimo enorme aforismo T. S. Eliot faz qualquer um pensar: “Num país de fugitivos aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo...”
E foi assim que me veio a idéia de escrever uma carta à Marina, que já apareceu num outro lugar.
O Vinícius escreveu um poema intitulado O Haver. O “Haver” era o nome de uma página dos antigos livros de contabilidade onde se registrava o que havia sobrado, o ganho, o “a receber”, por oposição ao “Deve”, onde se registravam as dívidas, o que deveria ser pago. É um poema de velhice, balanço do que sobrou na vida.
Eu também já estou no tempo de fazer o balanço entre as dívidas e os haveres. Minha vida se divide em três fases. Na primeira fase o meu mundo era do tamanho do universo e era habitado por deuses, verdades e absolutos. A esperança que eu escrevia na página do “Haver” era do tamanho da luz do sol ao meio-dia. Na segunda fase meus haveres encolheram. Meu mundo passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo. A esperança que iluminava o universo passou a iluminar apenas os horizontes da história. Na terceira fase, mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as esperanças teológicas e políticas, fiquei pobre de verdade e o meu mundo se encolheu mais ainda e chegou não à sua verdade final mas à sua esperança final, que teima em se alegrar com coisas pequenas.
A esperança é a última que morre. O Vinícius reconheceu essa chama entre os seus haveres e a chamou de “pequena luz indecifrável”. Diferente do otimismo. O otimismo é “sorriso por causa de”, quando há razões para sorrir. A esperança é “sorriso a despeito de”, quando não há mais razões para sorrir.
A imagem que o Vinícius escolheu para descrever sua pequena esperança é comovente: “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas, essa tristeza diante do cotidiano; ou essa súbita alegria ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.”
Álvaro de Campos escreveu um verso bruto: “E a luxúria única de já não ter esperanças?” Não ter esperança é estar em paz, não ter causas por que lutar, o fim do esforço... Viver o presente, o presente apenas, como se o futuro já não se anunciasse, como se fosse inútil saber o que ele anuncia. A luz do círio aceso se transforma em sombras fantasmagóricas nas paredes arruinadas daquilo que, no passado, foi uma catedral onde moravam os deuses. Muitos deuses e muitos heróis moraram dentre de mim. Hoje, não sei onde se meteram... Sou uma catedral em ruínas... Mas aí eu ouço passos na noite... Olho e vejo que alguém, no escuro, carrega uma chama. Me animo. Escrevo: é o meu jeito de soprar cinzas. Meu círio se acende. Fico alegre. A luz põe alegria no olhar.
O que é um olhar? O olhar não se encontra nos olhos. Não adianta olhar fundo nos olhos. O olhar não está lá. Foi Sartre que disse que “o olhar do Outro esconde os seus olhos.” Cecília Meireles confirma: “O sentido está guardado no rosto com que te miro.” Não os olhos; o rosto... Os olhos, retirados do rosto, são peças anatômicas sinistras. O segredo do seu olhar mora no rosto com que miro você. Quero ver o seu olhar, Marina.
Quero ver o seu rosto onde mora o sentido e não dois olhos retirados do seu rosto. O seu rosto, moldura dos seus olhos, falam mais e diferente que os seus olhos. Não quero ver os seus olhos na televisão. Quero ver o seu o seu rosto, onde mora o seu olhar...
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Correio Popular - 18/10/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário