sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Super-homem, o advento

André G. Fernandes*




Nietzsche suscita, ao ser citado, um certo tipo de pendor, pouco comum para autores de sua época, pois o mundo de hoje ainda o reconhece como um dos seus guias.
Ele travou um embate de corpo e alma com suas dúvidas existenciais, aceitando todos os riscos e defrontando os mistérios numa angústia incomum, como uma testemunha de vanguarda de nossas piores tentações. Pretendeu criar sua própria revelação do homem baseada em axiomas que não passam de máximas cristãs viradas pelo avesso e tomadas pelo homem moderno como princípios para uma atitude de vida.
O fundamento que criou para si é a descrença radical. “Para mim — exclama ele no Ecce Homo —, o ateísmo não é o resultado de alguma coisa, ainda menos de um acontecimento da minha vida em casa. É algo instintivo”. Causa impressão de que esse Deus, a quem ele pretende despedir por “justa causa”, continua a ser olhado como adversário real e próximo. Desse pressuposto, procedem todas as suas teses: não há Deus, o céu está vazio — assim proclama Zaratustra.
A primeira consequência desse postulado é que não pode existir a religião, pois ela resultaria de um desdobramento do homem. Nos mais aptos, dá-se uma crise de consciência da grandeza humana, a qual, não ousando afirmar-se, acaba por atribuir a um ser sobrenatural os próprios atributos do homem. Para os fracos, esses atributos da divindade são os que eles jamais poderão ter.
A religião é uma alienação da personalidade, uma negação da grandeza do homem. Impede-o de ser “fiel à terra”, ou seja, de realizar suas possibilidades. Deus é o símbolo sobrenatural de que se reveste a covardia humana, a vontade de impotência. E a conservação deste mito decorre do fato de ser mais cômodo não ser do que querer ser, já que a maioria recusa o esforço heróico e necessário para “ser o que se é”.
Para Nietzsche, o cristianismo é a religião que leva ao cúmulo a alienação do homem. A partir do princípio de que “todo o bem e toda a verdade são dados pela graça”, o cristianismo tira ao homem todas as hipóteses de ser ele próprio. A fé atenta contra a “fé na vida”.
Na honestidade, na simplicidade e no amor ao próximo, Nietzsche vê “um repúdio do eu” — o que é, aliás, exato, mas que ele interpreta como um atentado contra o homem. “A compaixão é um desperdício, parasita nocivo à saúde moral”. O verdadeiro homem deve ter por máxima: “Sê duro!”.
Assim, matar Deus é afirmar o homem: propõe-se a cada homem, em vez das covardes facilidades que, segundo ele, a religião nos dá, a aventura prodigiosa da “conquista penosa e cheia de riscos” do homem autêntico. “Desde que deixou de haver Deus, a solidão tornou-se intolerável. Importa que entre em ação o homem superior”.
Ele sabe que a morte de Deus é um fato de uma importância terrível e muitos ficaram espantados perante esse homicídio. “Como pudemos fazer semelhante coisa? Não vamos perder-nos num infinito?” Nietzsche tem a certeza de que a humanidade entrou num ciclo de catástrofes. Ele não nos oferece o paraíso na Terra, à maneira do socialismo, porque não é fácil fazer do homem um novo deus.
Ao fim, está o homem, mas não a versão covarde que vive no lodo das religiões. É o homem que pôs em prática a morte de Deus e dela tirou todas as consequências: vive, sem medo da morte, a vida em sua plenitude e realiza as potencialidades infinitas que surgem, o superhomem. Nessa visão messiânica sem Deus, o superhomem é ao mesmo tempo o salvador e o salvado.
Essa ideia justificará a violência, a crueldade e a própria escravidão, pois é legítimo que a raça do superhomem seja servida pela dos medíocres e dos covardes. É “para além do bem e do mal” que o homem se erguerá, como deus admirável na sua perfeição, caminhando todo ele, não para a virtude, mas para a nobreza e a grandeza.
Seu pensamento alimentará as razões daqueles que se julgarem vocacionados para o posto de superhomem. Na política, Mussolini e Hitler serão seus leitores e discípulos. Porém, será necessária a experiência dos campos de concentração e das câmaras de gás para que a humanidade compreenda o resultado dos aforismos líricos acerca da moral do superhomem e do esmagamento das raças inferiores.
Se, por um lado, Nietzsche foi o arauto da humanidade ateia, por outro, foi quem melhor a advertiu dos riscos que corria em sua tentativa. Por isso, não fala sem afeição dessa testemunha profética, dessa testemunha dilacerada.
*André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito da 2ª Vara Cível da comarca de Sumaré
Correio Popular, 16/10/2009

Nenhum comentário:

Postar um comentário