sábado, 24 de outubro de 2009

Uma esquerda lacaiana

Jorge Alemán*

A expressão "esquerda lacaniana" reúne termos que não surgiram, em princípio, para estar junto, o que abre uma questão sobre a legitimidade de sua vinculação. Salvando as distâncias, é como quando, na Europa, dizemos "esquerda peronista" e, de imediato, multiplicam-se as suspeitas. Tentarei determinar em que pode constituir o que chamo de esquerda lacaniana.
O que significa ser de esquerda no século XXI? Que valor tem a expressão e que tipo de compromisso designa quando o relato histórico que deu lugar a ela se desvaneceu tanto em sua práxis teórico-política como em sua eficácia simbólica para outorgar um princípio de legibilidade sobre o que é a realidade? Nenhuma realidade, por consistente e hegemônica que se apresente, como por exemplo o capitalismo atual, deve ser considerada como definitiva (é certo que, atualmente, para não considerar o capitalismo definitivo é necessário fazer um grande esforço, agora que, em sua amálgama com a Técnica, conseguiu pôr todo o "ser do ente" à disposição para indicá-lo como mercadoria). Ser de esquerda implica em insistir no caráter contingente da realidade histórica do capitalismo.
Não se pode falar de "luta anticapitalista" porque o discurso capitalista que Lacan propõe não oferece um ponto a partir de onde se possa localizar o lugar onde efetuar o corte. O discurso capitalista confere à realidade uma conexão de lugares capturados em um movimento circular com respeito ao qual uma luta direta é um absurdo lógico, um absurdo como lutar contra a técnica ou o rizoma. Por sua vez, a saída história é irrepresentável, porque, talvez, convenha deixar vazio por agora o lugar que surgiria além o depois do capitalismo. Qualquer definição reinscreveria esse lugar em um sentido já consumado historicamente. Não há uma semântica "anticapitalista"; há sempre uma tensão para com um significante "novo" e ainda por decifrar.
Por outro lado, não há uma história da humanidade que necessariamente fosse desembocar no capitalismo. Nesse aspecto, entendemos por capitalismo algo diferente de uma evolução progressiva dos "modos de produção". Ao invés, trata-se de uma série de bifurcações históricas contingentes que entrelaçaram de modo instável a técnica, a mercadoria, o saber, naquilo que denominamos de relato moderno. Por sua vez, o relato moderno é uma categoria narrativa, mais do que uma ordem histórica perfeitamente delimitada. Pois bem, é próprio de certa tendência historicista transformar um acontecimento, pelo simples fato de ter sido possível, em necessário. Reconhecemos essa tendência quando, diante do fato acontecido, explicam-se os antecedentes que, "inevitavelmente", conduziam a ele.
De qualquer modo, mesmo quando a saída do capitalismo ou passagem a outra realidade tenha ficado diferida, mesmo quando esse trânsito nunca esteja garantido e possa não se cumprir, mesmo quando essa outra realidade diferente à do capitalismo já não pode ser nomeada como socialismo, em todo caso ser de esquerda é não dar por eterno o princípio de dominação capitalista. Esse princípio de dominação, a partir de uma perspectiva lacaniana, é primeiro de ordem política, mesmo que, no caso do capitalismo, é evidente que a economia tem um papel determinante. Mas não já como "determinação de última instância". É preciso ter em conta que o mercado também está atravessado pela fratura entre o real e a realidade e pode se deslocar. Por isso, agora torna-se mais pregnante do que nunca "o que o mercado quer de nós".
Também é preciso destacar que a dominação não pertence exclusivamente à época do capitalismo. Há dominação porque o sujeito, em sua própria constituição, não pode dar a si mesmo a sua própria representação. A barreira simbólica que o constitui o separa da pulsão, mas por sua vez estabelece uma doação de um plus de satisfação pulsional que se associa a uma série de "mandatos", "ditos oraculares e primeiros", "imperativos", significantes amos que, sem representar o sujeito exaustivamente, determinam o seu lugar.
A subversão de tais significantes amos nunca se realiza em uma tomada de consciência ou em uma destruição crítica deles. Esse é precisamente o problema da ideologia no que poderíamos chamar de sua fixação fantasmática. A ideologia não é uma ilusão ou uma falsa consciência. É uma articulação entre os significantes amos que surgem fora de sentido, como designadores do encontro com o real e os objetos que o próprio sujeito perde no acesso ao simbólico. Uma amálgama entre o significante amo e o plus de gozar que o tamponamento contingente da divisão constitutiva do sujeito. A ideologia é uma articulação entre mandatos ou ideiais, pelo lado do significante amo, e rejeições ou "imputações ao Outro" do lado dos objetos da pulsão. E essa é a mistura de servidão e satisfação sádica que toda ideologia, no limite, põe em jogo.

Sujeito neoliberal
Atualmente, percebe-se com clareza que não só o totalitarismo tentou produzir um sujeito novo, mas também o chamado "neoliberalismo" é a tentativa de construir, sobre a aniquilação do sujeito moderno (o crítico, o freudiano e o marxista), um indivíduo autista e consumidor indiferente à dimensão constitutivamente política da existência, um individuo referido só ao gozo autista do objeto técnico que se realiza como mercadoria subjetiva na cultura de massas. Não obstante, não se trata de criticar ou rejeitar esse indivíduo, nem de desprezar sua massividade midiática a partir de uma nostalgia pseudo-aristocrática. Pelo contrário, ao modo freudiano, trata-se de fazer comparecer a sentença que podemos formular assim: "Ali onde o indivíduo neoliberal do gozo autista é, o sujeito excêntrico do inconsciente deve advir".
O indivíduo neoliberal é o ponto de partida para se pensar qual é a prática operativa que corresponde ao seu tempo. Se dizemos ponto de partida é porque o individualismo liberal, por mais que pareça consistente em seu autismo consumidor, não pode se enclausurar sobre si mesmo. O tempo de sua existência estabelece as condições para que esse indivíduo possa ser desestabilizado em seus próprios fundamentos, e ali, nesses resquícios e pontos de fuga, é onde a prática política que inclua a psicanálise deve intervir. Nesse ponto, trata-se de tensionar ao limite a relação histórica entre a vocação política de esquerda e a psicanálise, a partir do único fato histórico que pode outorgar força à interpelação: tanto a invenção freudiana como o desenvolvimento do ensinamento de Lacan se constituem, de entrada, como uma leitura sintomática da esquerda, uma leitura de seus textos, práticas e aspirações.
Por sua vez, ser de esquerda é pensar que a exploração da força de trabalho e a ausência de justiça não só continuam sendo um insulto de primeira ordem para com a própria construção da subjetividade, mas também que a brecha ontológica na qual o sujeito se constitui, a divisão incurável que marca a sua existência com uma singularidade irredutível só pode captada, em sua "diferença absoluta", por fora e além das hierarquias e divisões instauradas pelo poder do mercado. Por isso, o impensável fim do capitalismo, se tivesse lugar, seria paradoxalmente o começo da viagem, o início da afirmação tragicômica da existência, o "tu és isto" de um sujeito por fim questionado, sem as desculpas burguesas que, há muito tempo, o levam inexoravelmente a estar disponível para tudo.
A esquerda marxista pode elaborar seu final no único âmbito em que esse final pode adquirir um valor distinto ao de fechamento ou cancelamento, um final que não é tempo cumprido, mas sim oportunidade eventual para outro começo. Esse âmbito talvez possa ser o pensamento de Jacques Lacan, única teoria materialista sobre o mal-estar da civilização próprio do século XXI. Se Lacan propôs a elaboração de seu discurso como uma "práxis sobre o real-impossível", sobre um real ao qual o discurso não pode alcançar, mas que, por sua vez, se pode alcançar por meio do discurso (compreendendo nisso a leitura), essa questão primordial do real é o que distingue seu intento teórico da hermenêutica, da desconstrução e das "outras éticas".
Considero que Lacan constitui o único intento sério de pôr à prova até onde o simbólico pode e não pode transformar, por meio de uma práxis, o real. Só admitindo quais são as condições de constituição do sujeito e de como ele experimenta o limite de suas transformações é que podemos aprender sobre as condições, suportáveis ou não, de uma mutação subjetiva que não seja mero estupor ou perplexidade e que possa ser transmitida em sua condição de experiência. Por isso, talvez não haja outro discurso como o lacaniano para reconhecer com a maior honestidade o que uma práxis ensina em sua impotência em modificar o real.
E por isso mesmo o pensamento de Lacan pode ser a oportunidade para iluminar com uma certa coragem intelectual o que ainda permanece impensado no final: a derrota em escala mundial, a partir dos anos 60, do projeto revolucionário de esquerdas. Derrota que o saber pós-moderno escamoteou para o pensamento. Nesse aspecto, Lacan preparou desde o começo, por meio de leituras e apontamentos diversos, as condições para que o pensamento marxista possa elaborar seu próprio final, no único lugar onde a elaboração é possível: no trabalho de duelo que se faz fora do lar, do lar filosófico.
Lacan começou "deshegelinizando" o materialismo de Marx, propondo um hiato irredutível entre a verdade e o saber. Mas esse hiato constituirá a ocasião de uma homenagem definitiva a Marx. Para Lacan, o inventor do sintoma como verdade imprevisível e incalculável que não pode ser domesticada pelo exercício de um saber é Marx, e não Freud. A partir dessa primeira perspectiva geral, pode-se encontrar em Lacan, a partir de 1938, uma desmontagem meticulosa de todos os motivos marxistas: a análise da mercadoria incorporando a temática do gozo pulsional, as diversas objeções à teleologia história e à metafísica de seu sujeito, a apresentação de uma temporalidade problematizada com as diversas modalidades do retorno e liberada de todo fantasma utópico.
Em que também não se trata de "progressismo", porque a temporalidade do sujeito que surge como resultado da brecha ontológica não é retilínea, é um "futuro anterior" que reúne de um modo absolutamente específico os êxtases temporais do passado, do presente e do futuro, em uma dupla conjectura: o que "terei sido" para "o que estou chegando a ser". E não se trata de utopia, porque utopia sempre implica em reconciliação final da sociedade consigo mesma. Por último, a esquerda lacaniana deve subverter a semântica da revolução. Uma esquerda lacaniana é sempre uma reescritura de um legado e de uma herança, um deciframento que estabelece e prova um novo tipo de aliança com a pulsão de morte inscrita no modo em que a civilização acontece no país.
Uma das primeiras posições de Lacan é não admitir o telos histórico do materialismo marxista, nem os movimentos dialéticos do em-si-para-si, mas sim dar todo o seu valor de verdade à mais-valia, estabelecendo uma complexa homologia com aquilo que é designado por Lacan como "plus de gozar": o verdadeiro segredo do capitalismo reside em uma economia política do gozo. A operação fantasmática por meio da qual o sujeito conquista sua realidade e sua consciência tem seu ponto de partida nesse plus de gozar que funciona inclusive em condições de miséria extrema. O que se despoja das multidões é dos recursos simbólicos que permitam estabelecer e inventar em cada um o percurso simbólico propício para o circuito pulsional do plus de gozar. A miséria é, nesse sentido, o estar a sós com o gozo da pulsão de morte no eclipse absoluto do simbólico. A não "satisfação das necessidades materiais" não só não apaga o circuito pulsional, mas também o acentua de modo mortífero. Nesse aspecto, o capitalismo, da mesma forma que a pulsão, é um movimento circular que se autopropulsiona ao redor de um vazio que o obriga sempre a recomeçar, sem que nenhuma satisfação o preencha de um modo definitivo. Ainda que sempre realize um plus de gozo parcial e excedente a toda utilidade.
Para uma esquerda lacaniana, pensar as consequências dessa "parte maldita" nos processos de subjetivação é uma exigência política de novo cunho. Por isso, se é verdade que atualmente o poder se tornou biopolítico, tomando para si como assunto essencial a "vida" biológica, em uma perspectiva lacaniana agregaríamos que, tratando-se da vida dos corpos falantes, sexuados e mortais, é a vida do plus de gozar. O corpo do falante não é outra coisa que a sede do plus do gozo. Séries televisivas de médicos, legistas, operações televisionadas, programas de saúde, em todos os casos tenta-se capturar, na época em que a ciência quer apagar a fronteira entre o ser falante e o animal, o plus de gozar que anima a biografia do corpo. Poderá a técnica tornar o plus de gozo uma unidade discernível, quantificável, localizável? Não é um paradoxo menor o fato de que o gozo pulsional é a única "autonomia" (não consciente nem reflexiva) que resta à existência falante diante da exigência técnica de que o mundo se torne imagem.
*Neste texto, Jorge Alemán, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise (ELP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), propõe uma práxis de esquerda fundamentada no "pensamento de Jacques Lacan, única teoría materialista sobre o mal-estar do século XXI", e defende que "o ensino de Lacan pode iluminar o que ainda continua impensado: a derrota, em escala mundial, do projeto revolucionário de esquerda".
O artigo foi extraído do livro "Para una izquierda lacaniana. Intervenciones y textos", que será publicado em breve na Argentina pela Ed. Grama. O texto foi publicado no jornal Página/12. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Publicado no IHU, 24/10/2009

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