domingo, 29 de novembro de 2009

Vítimas e algozes: a psicanálise diante da culpa


Segue aqui uma entrevista com Veronika Grueneisen, uma das idealizadoras das Conferências do Chipre, organizadas desde os anos 80 para reunir e permitir a colaboração entre psicanalistas alemães e israelenses. Como é possível renunciar à identificação inconsciente com a geração dos próprios pais para desenvolver novas possibilidades de relação profissional? Essa é a questão que guiou os trabalhos.

A reportagem é de Isabella Mattazzi, publicada no jornal Il Manifesto, 25-11-2009.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Já nos anos 80, Jacques Derrida havia declarado a possibilidade de uma nova ética da psicanálise que levasse em conta não apenas modelos teóricos de referência, mas as diversidades culturais dos psicanalistas enquanto sujeitos com uma identidade geográfica, política, social bem precisa. Quem faz psicanálise hoje, de fato, não pode não reconhecer o porte muito amplo, dentro da prática terapêutica, da própria vivência histórica e do profundo entrelaçamento que essa vivência parece ter com os núcleos mais problemáticos da própria formação psicanalítica. Mas o que quer dizer, para um psicanalista, confrontar-se com a História? O que significa apresentar-se não apenas como figura profissional, mas como sujeito "político-cultural"?

Falamos sobre isso, por ocasião do recente encontro "Estrangeiro familiar" - organizado em Milão pelo Centro Milanês de Psicanálise Cesare Musatti -, con Veronika Grueneisen, psicanalista alemã, presidente da organização Partners in Confronting Collective Atrocities e organizadora de uma das experiências mais interessantes e complexas destes últimos anos no âmbito dos estudos sobre as dinâmicas psicosociais, as Conferências do Chipre.

Eis a entrevista.

Depois da Segunda Guerra Mundial, os psicanalistas alemães que haviam deixado a Alemanha não aceitaram, no seu retorno, fazer parte de uma sociedade psicanalítica que fosse comum com aqueles que, pelo contrário, ficaram no país. De que modo a História desempenhou um papel simbólico importante na prática psicanalítica alemã?
Como para todo o resto da sociedade, os acontecimentos deste último século, e de modo particular o Holocausto em toda a sua dramaticidade, tiveram repercussões muito graves em nível consciente e inconsciente para os psicanalistas alemães. E como para todo o resto da sociedade, foi necessário para eles um tempo consideravelmente longo para enfrentar a coisa. Depois da ruptura do mundo psicanalítico no pós-guerra em duas sociedades distintas, criou-se a ideia de que havia uma maneira "limpa" de fazer psicanálise e uma "culpada", assim como no percurso terapêutico individual podíamos ser consideradas "afortunados" e "infortunados", de acordo com quem era o seu analista. Apenas hoje, depois de 40 anos, estamos nos dando conta do porte ideológico de tudo isso. Agora, os membros da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft e da Deutsche Psychoanalytische Vereinigung falam entre si e colaboram, o que seria absolutamente impensável até poucos anos atrás. Um discurso semelhante poderia ser feito sobre o que se refere às relações entre psicanalistas alemães e psicanalistas israelenses: o Holocausto jogou uma sombra que prejudicou durante anos o intercâmbio profissional entre os colegas das duas nações, com resistências radicadas na parte mais profunda e escondida da sua própria identidade. Como era possível que os filhos alemães dos culpados e os filhos israelenses das vítimas pudessem refletir juntos? Como era possível renunciar à identificação inconsciente com a geração dos próprios pais para desenvolver novas possibilidades de relação e de colaboração profissional? Exatamente para responder a esse tipo de perguntas é que nasceram, nos anos 80, as Conferências do Chipre.

Pode nos contar em que consistem e como se desenvolvem essas Conferências?
Trata-se de uma série de seminários residenciais de seis dias de duração, uma espécie de espaço protegido em que os psicanalistas alemães e judeus podem enfrentar o significado do Holocausto no mundo da nossa contemporaneidade, refletindo sobre o porte emotivo dentro da construção identitária das segundas e das terceiras gerações depois da guerra. Os seminários são organizados seguindo o método das "group relations" desenvolvido pelo Instituto Tavistock de Londres, que prevê um trabalho sobre as emoções individuais dentro de reuniões de grupo estruturadas de vários modos. Há reuniões de grupo restritas, com participantes de uma única nacionalidade ou de nacionalidades mistas, e reuniões plenárias com todos os grupos reunidos. A dimensão e a composição do grupo influencia notavelmente na atmosfera do debate, e as relações que de vez em quando se criam entre os participantes têm consequências importantes sobre tudo aquilo que é experimentado e discutido.

Os primeiros dois encontros ocorreram em Nazaré, o terceiro em Bad Segeberg, na Alemanha. Hoje, as Conferências têm como lugar de eleição o Chipre. Qual importância a escolha "geopolítica" dos lugares teve a partir de um ponto de vista simbólico e quanto ela influenciou concretamente o desenvolvimento das reuniões?
Conseguir organizar as primeiras duas Conferências em Israel foi de uma importância crucial para um bom início dos trabalhos. Os alemães estavam de fato bem intencionados a se expôr, indo para um país onde os judeus são a maioria. O que nunca esperávamos, pelo contrário, é que os israelenses fossem notavelmente atraídos pela ideia de ir para a Alemanha. Esses seminários, de fato, permitiram que numerosos colegas israelenses de origens alemãs colocassem o pé na Alemanha pela primeira vez, sentindo-se totalmente protegidos. A recente escolha do Chipre deriva, ao invés, da consciência por parte da equipe de uma necessidade sempre mais evidente de ampliar o debate também a outros grupos nacionais atingidos pelas consequências do Holocausto. Hoje, um número sempre maior de pessoas de identidade mista (alemão-judaica, judaico-inglesa, judaico-americana) participa das nossas Conferências, e o Chipre, pela sua história tão complexa e dolorosa e pela sua substancial alteridade com relação à dicotomia Alemanha-Israel, nos pareceu ser um ótimo cenário para realizar os nossos encontros.

As Conferências do Chipre, portanto, são organizadas segundo um método não especificamente racional e cognitivo, mas sim experimental, ou seja, baseado na experimentação direta de processos dinâmicos vividos no "aqui-agora" do ambiente. Além disso, não é tanto o indivíduo que se coloca como sujeito-objeto de análise, mas sim o grupo, ou melhor, "os grupos" alemães e israelenses juntos. O que significa discutir o próprio sentido de culpa ou o próprio terror à prepotência, não mais diante dos fantasmas do próprio inconsciente (como ocorre em um âmbito psicanalítico "clássico"), mas diante da real presença do outro?
Diria que essa situação traz consigo um efeito duplo. De um lado, a realidade é mais aterrorizante do que o fantasma, porque, em relação ao outro, tu estás mais exposto à tua vergonha, à tua culpa, à tua angústia. Por outro lado, porém, lidar com a realidade nos coloca surpreendentemente diante de um alívio improvisado. Quando tu consegues dizer todo o teu ódio ou o teu medo olhando no rosto não de um fantasma, mas de uma pessoa real, e quando tu vês que dizendo tudo isso não acontece nada de terrível, mas pelo contrário consegues dizer o teu ódio ou o teu medo mais uma vez e ninguém te mata ou foge horrorizado, imediatamente desencadeia-se uma espécie de processo pacificador ou até reparativo: em que o "reparativo" não tem um sentido de uma reconciliação ou de um perdão, mas de uma aceitação real e articulada daquilo que aconteceu. Além disso, a escolha de nos darmos o estatuto de uma organização internacional foi resolutiva porque ofereceu a possibilidade de criar um espaço simbólico e real que fosse "protegido", tanto para os alemães quando para os judeus, defendendo uns e outros de qualquer forma de vingança ou de violência.

Os problemas tratados ao longo das Conferências se referem diretamente aos pontos nevrálgicos da construção da nossa identidade contemporânea. Além, naturalmente, de temas como o ódio, o medo ou as várias fantasias destrutivas, surgiu dos encontros, da parte alemã, um desconforto extremamente marcado com relação às figuras paternas, principalmente com relação à divisão simbólica entre as suas imagens familiares e o seu papel histórico.
A experiência desses seminário é extremamente forte de um ponto de vista emotivo e requer um trabalho enorme de colocar em discussão e reelaborar a nossa própria identidade. Tirar a imagem dos pais do curso de uma cotidianidade familiar tranquilizante para inseri-la em um quadro histórico de forte destrutividade nos coloca diante de um pensamento aterrorizante: encontrando-nos dentro de um contexto político-social semelhante, provavelmente nós também, assim como os nossos pais tão "normais", podemos ser envolvidos do mesmo modo. Quanto a isso, diria apenas que a primeira Conferência deveria ter sido realizada em 1992 e não foi realizada porque não se havia alcançado um número suficiente de participantes. Nem todos conseguem trabalhar sobre temas tão difíceis. Quem não é capaz de sustentar seu peso geralmente prefere ficar em casa.

A senhora acha que o modelo dessas conferências é exportável também para a gestão de outras formas de conflito, por exemplo a questão árabe-israelense ou a irlandesa? E se sim, com quais diferenças? Existe um "núcleo problemático" próprio da questão judaica ou todo conflito responde a dinâmicas comuns?
Estou absolutamente convencida de que esse modelo pode ser exportado também para outras formas de conflito. Em 2007, criamos a Partners in Confronting Collective Atrocities, uma organização que absorveu a direção e a organização das Conferências, estendendo seu debate também para o conflito israelense-palestino. Em 2008, pela primeira vez, uma delegação palestina, cuja contribuição foi extremamente importante, participou no Chipre.
No Holocausto, a divisão radical entre "vítimas" e "algoz" foi um elemento dramaticamente essencial na definição simbólica dos papéis e, talvez também por isso, forneceu um forte modelo de identificação identitária nacional. No mundo contemporâneo, pelo contrário, as novas formas de conflito nos mostram um limite fugaz entre as duas figuras, basta pensar na figura do terrorista que se "imola" no momento mesmo em que realiza um ato de extrema violência ao outro.
Essa reflexão corresponde exatamente ao trabalho de análise que a nossa equipe está fazendo nestes últimos anos com relação ao futuro das Conferências. Por meio da experiência dos seminários, compreendemos que os papéis vítima-algoz podem mudar constantemente, e a configuração ambígua do conflito contemporâneo é um exemplo lampante disso. Mas eu diria também que não formulamos uma resposta precisa a esse tipo de problema. O nosso lema, em certo sentido, é "não sabemos o que fazer e seguimos em frente", no sentido do contínuo trabalho de aprofundamento e a constante evolução das nossas posições teóricas.

As Conferências do Chipre parecem lembrar em parte os trabalhos da Truth and Reconciliation Commission, instituída na África do Sul em 1995. O mandato da Comissão era o de recolher e registrar os testemunhos daqueles que haviam sido culpados por violações dos direitos humanos durante o regime do apartheid e daqueles que haviam sido suas vítimas.
Recentemente, alguns membros da nossa organização publicaram um livro sobre as nossas três primeiras experiências de encontro, "Fed With Tears-Poisoned With Milk", do qual Desmond Tutu escreveu o prefácio compreendendo perfeitamente o nosso espírito e revelando toda a sintonia da sua mensagem com o da Comissão sul-africana, da qual nós, porém, nos distanciamos evitando usar a palavra "reconciliação", que, dentro da nossa cultura centro-europeia, poderia dar a ideia totalmente errônea da vontade de um perdão qualquer ou também da busca por um "ponto de chegada" para o nosso trabalho. Para nós, ao invés, é fundamental que o confronto sobre esses temas seja elaborado de maneira contínua, para enfrentar o passado em favor do futuro.

Um trabalho exportável para outras geografias conflituosas
Veronika Grueneisen, psicanalista, vive em Nuremberg, é presidente da Partners in Confronting Collective Atrocities, supervisora da Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft, da International Psychoanalytical Association (Ipa) e é membro do Tavistock Institute's Advanced Organisational Consultation (Aoc). O "Modelo Tavistock", utilizado dentro das Conferências do Chipre, nasce no impulso dos primeiros trabalhos de terapia de grupo realizados por Harold Bridger e Wilfred Bion sobre os oficiais do corpo de aviação inglês durante a Segunda Guerra Mundial. Desenvolvido pelo Instituto Tavistock de Londres, fundado em 1946, baseado em uma teoria "clínica" da organização, explora em particular os aspectos emotivos e irracionais do comportamento dos indivíduos e dos grupos dentro de uma instituição, o modo em que influenciam o funcionamento da própria instituição, a qualidade das relações entre os seus membros, assim como entre a organização e o ambiente externo.

FONTE: IHU/Unisinos, 28/11/2009

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