domingo, 20 de dezembro de 2009

Arbeit mach frei: o trabalho liberta.

''Essa frase cínica e sarcástica antecipava os planos para a Europa''

"Arbeit macht frei". Como é sabido, essas eram as palavras que se liam na cancela de ingresso do campo de concentração de Auschwitz. O seu significado literal é "o trabalho liberta". O seu significado último é muito menos claro, só pode deixar-nos perplexos e se presta a algumas considerações.
A reportagem é do jornal La Repubblica, 19-12-2009, publicado originalmente em novembro de 1959, pela revista Triangolo Rosso, da Associação Nacional dos Ex-Deportados (Aned), da Itália.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O campo de concentração de Auschwitz foi criado tarde. Foi concebido desde o início como campo de extermínio, não como campo de trabalho. Tornou-se campo de trabalho só cerca de 1943 e apenas em medida parcial e de modo acessório. É, portanto, necessário excluir que aquela frase, na tentativa de quem a ditou, tivesse que ser entendida no seu sentido plano e no seu óbvio valor proverbial-moral.

É mais provável que tivesse significado irônico: que surgia daquela veia de humorismo pesado, insolente, funéreo, do qual os alemães têm o segredo, e que só em alemão tem um ano. Traduzida em linguagem explícita, ela, pelo que parece, teria que soar mais ou menos assim: "O trabalho é humilhação e sofrimento e se destina não a nós, Herrenvolk, povo de senhores e de heróis, mas a vocês, inimigos do Terceiro Reich. A liberdade que lhes espera é a morte".

Na realidade, e apesar de algumas aparências contrários, o desconhecimento, o vilipêndio do valor moral do trabalho era e é essencial ao mito fascista em todas as suas formas. Sob todo militarismo, colonialismo, corporativismo está a vontade precisa, por parte de uma classe, de explorar o trabalho dos outros e ao mesmo tempo de negá-los todo valor humano. Essa vontade aparece já claramente no aspecto antioperário que o fascismo italiano assume desde os primeiros anos e vai se afirmando com precisão sempre maior na evolução do fascismo na sua versão alemã, até as maciças deportações na Alemanha de trabalhadores provenientes de todos os países ocupados, mas encontra a sua coroação, e junto com a sua redução ao absurdo, no universo concentracionário.

Ao mesmo objetivo, tende a exaltação da violência, ela também essencial ao fascismo: o cassetete, que rapidamente alcança um valor simbólico, é o instrumento com o qual se estimulam ao trabalho os animais de carga e de tração.

O caráter experimental dos campos de concentração é hoje evidente e provoca um intenso horror retrospectivo. Hoje, sabemos que os campos de concentração alemães, tanto os de trabalho quanto os de extermínio, não eram, por assim dizer, um subproduto de condições nacionais de emergência (a revolução nazista antes, a guerra depois), não eram uma triste necessidade transitória, mas sim os primeiros, precoces rebentos da Nova Ordem. Na Nova Ordem, algumas raças humanas (judeus, ciganos) deveriam ser apagadas. Outras, por exemplo os eslavos em gênero e os russos em espécie, deveriam ser escravizadas e submetidas a um regime de degradação biológica cuidadosamente estudado, para transformar os indivíduos em bons animais de trabalho, analfabetos, privados de qualquer iniciativa, incapazes de rebelião e de crítica.

Os campos de concentração foram, por isso, substancialmente "instalações piloto", antecipações do futuro marcado para a Europa nos planos nazistas. À luz dessas considerações, frases como a de Auschwitz, "O trabalho liberta", ou como a de Buchenwald, "A cada um o seu", assumem um significado preciso e sinistro. São, por sua vez, antecipações das novas tábuas da Lei, ditadas pelo patrão ao escravo e válidas só para este último.

Se o fascismo tivesse prevalecido, a Europa inteira se transformaria em um complexo sistema de campos de trabalho forçado e de extermínio, e aquelas palavras, cinicamente edificantes, seriam lidas nas portas de ingresso de todas as oficinas e de todos os canteiros de obras.
FONTE: IHU/Unisinos online, 20/12/2009

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