sábado, 23 de janeiro de 2010

Os paradigmas de Thomas kuhn

ANTONIO CICERO


_____________________________________Thomas Kuhn (foto) ___

A ciência tem início quando pesquisadores alcançam consenso em torno de "paradigma"

________________________________________

No último artigo, citei a observação de Adorno de que "a astrologia [...] oferece um atalho, reduzindo o que é complexo a uma fórmula prática e oferecendo, simultaneamente, uma agradável gratificação: o indivíduo que se sente excluído dos privilégios educacionais pode, ainda assim, pertencer a uma minoria que está "por dentro'".
Chamei a atenção para o fato de que essa descrição da astrologia se aplica a inúmeras outras ideologias, tanto laicas quanto religiosas. Falei destas e fiquei de falar daquelas no artigo de hoje. Entretanto, vários leitores afirmaram não ver diferença qualitativa entre ciência e religião, ou entre razão e fé.
Alguns mencionaram, nesse contexto, as teses do famoso historiador das ciências Thomas Kuhn. Resolvi então comentar tais teses, bem como o uso delas feito pelo relativismo cultural contemporâneo, sob a forma do "construcionismo social".
Para Kuhn, a ciência tem início quando uma comunidade de pesquisadores em determinado campo alcança consenso em torno de um "paradigma", isto é, de uma teoria que funcione como o fundamento da sua pesquisa subsequente. Assim foi, durante a Idade Média, a astronomia geocêntrica de Ptolomeu. Se, por um lado, o processo de adoção de tal paradigma ocorre como uma "revolução científica", por outro lado, após a sua adoção, o trabalho do cientista passa a ser o que Kuhn chama de "ciência normal". Esta se dá como o trabalho rotineiro de pesquisa e solução de enigmas, a partir do paradigma.
Constituindo a própria condição de possibilidade da ciência normal, o paradigma dominante é então ferrenhamente defendido pelos cientistas.
Com o tempo, porém, acumulam-se enigmas insolúveis nos quadros do paradigma adotado. A ciência então entra em "crise". Com isso, torna-se concebível a adoção de um novo paradigma, capaz de solucionar pelo menos os mais importantes desses enigmas ou anomalias. Quando ele é encontrado, dá-se uma nova revolução científica.
Assim foi a astronomia heliocêntrica de Copérnico, ao substituir a geocêntrica de Ptolomeu. Repete-se então todo o processo.
Segundo Kuhn, os diferentes paradigmas são "incomensuráveis". Isso implica que um paradigma não pode ser entendido a partir de outro, isto é, antes de ser adotado. Sendo assim, a transição de um paradigma para outro não pode ser feita gradualmente. Ela deve ocorrer de uma vez só, como uma "conversão" religiosa. Depois que ela tem lugar, é como se o cientista tivesse passado a habitar outro mundo.
Com o tempo, o próprio Kuhn acabou fazendo ressalvas à tese da incomensurabilidade. Ignorando-as, os construcionistas sociais a tomaram ao pé da letra. Se quem ainda não adotou um paradigma é incapaz de compreendê-lo, argumentam, como poderia julgá-lo, compará-lo a outro, criticá-lo?
Assim se confirma o relativismo cultural. Não admira que os defensores de teorias pseudocientíficas como o desígnio inteligente ("intelligent design") tentem legitimar-se através das teorias de Kuhn. Explica-se também que, acreditando poder ir ainda mais longe, muita gente não veja grande diferença entre a "fé" do cientista no seu paradigma científico e a fé do religioso no seu paradigma religioso...
É espantoso que uma obra como a de Kuhn, cujo sentido seria mostrar a especificidade do empreendimento científico, possa, contra uma gigantesca evidência empírica, servir para confundir a ciência justamente com a religião, em luta contra a qual ela historicamente se constituiu. Se aceitarmos esse resultado, então na ciência, como, aliás, diz o colega de Kuhn, Paul Feyerabend "anything goes", vale tudo.
Mas não é possível aceitá-lo. A versão construcionista social de Kuhn pode ser rejeitada "in limine", como todo relativismo, simplesmente por ser autofágica. Constituindo ela mesma um paradigma, a versão de Kuhn é, segundo os próprios pressupostos, incomensurável com outros possíveis paradigmas, de modo que não pode ser julgada, comparada com eles ou criticada por quem ainda não o tenha adotado.
Sendo assim, desqualifica a si própria: quem ainda não a adotou carece de qualquer razão para adotá-la, e quem já a adotou não é capaz de justificar racionalmente tal decisão a quem não a tenha adotado.
Mais ainda: consiste num empreendimento irrealizável, segundo ela mesma, pois, precisamente ao supor que os paradigmas não possam ser julgados, comparados com outros ou criticados, ela se proíbe de afirmar qualquer coisa sobre eles.
___________________________________________

Nenhum comentário:

Postar um comentário