domingo, 21 de fevereiro de 2010

Carnaval: questão de limites

Affonso Romano de Sant’Anna*

“Se eu fosse pensador francês, um Derrida, um Barthes, um Foucault, um Lacan, com aquela mania e facilidade que os franceses têm, eu criaria uma nova disciplina: a limitologia”



O carnaval traz de volta a questão dos limites.

No carnaval vale tudo? Vale fazer xixi nas ruas? Vale fazer sexo em público? Vale desfilar nua? Vale ironizar e/ou agredir toda e qualquer crença e pessoa?

Que regras, que leis podem ser rompidas onde e como durante o carnaval?

É uma ilusão pensar que no carnaval vale tudo. Uma vez li sobre um carnaval na cidade suíça de Basle, onde há uma série de regras que não podem ser quebradas, inclusive jogar papel no chão ou sujar as ruas. Pensei: isso é um carnaval protestante, bom mesmo é o nosso carnaval católico/pagão/tropical.

Estava errado. No Rio, neste carnaval, a São Clemente apresentou um enredo sobre o “Choque de Ordem” praticado pela prefeitura, e foi promovida. Visto mais de perto, portanto, o nosso carnaval não é um vale-tudo. Aliás, até nos ringues, onde ocorre a luta chamada “vale- tudo”, há juízes e regras. No desfile das escolas de samba, igualmente, há uma série de quesitos, o tempo está cronometrado e as notas dos jurados estabelecem hierarquia e valores. Daí que há quem ganha o primeiro lugar e quem seja rebaixado. Quando uma “rainha da bateria” aparece sem “cachesex”, há uma celeuma danada. Aliás, deveriam chamar isso de “cachêsex”. O sexo está escondido (“caché”), mas a rainha está recebendo ou pagando uma nota (“cachêt) para desfilar “sexy”. E foi revelado que ser rainha da bateria pode custar uns R$ 300 mil à tal celebridade.

Claro que no carnaval, como dizem os estudiosos, há uma inversão e superposição de espaços: mistura-se a casa e a rua, o particular e o público, o feminino e o masculino, o feio e o bonito, o limpo e o sujo, o pobre e o rico, o direito e o avesso, mas isso não significa falta de limites, senão a criação de outros limites que não devem ser ultrapassados.

Portanto, a questão dos limites no carnaval, que parece uma coisa eminentemente física, remete para outros terrenos: do corporal, passa pelo moral, pelo social, pelo artístico e, eu diria, sintetizando, que a questão dos limites é física e metafísica. E nessa questão do carnaval, se me permitem, temos que voltar aos gregos, seja por causa do mito de Dionísio, rei das orgias, seja porque os gregos, como bons carnavalescos, reconheciam que a “ hybris” (excesso) tinha que interagir com o “metron”(medida). Portanto, avançamos muito pouco nesta questão.

Os educadores estão perplexos, porque os alunos “ perderam os limites” e usam Ipod e celular nas salas de aula. Os pais estão atônitos, porque nossa geração fez a apologia da “liberdade” e agora a liberdade virou licenciosidade. Na arte, o mesmo desnorteamento: o mercado impondo que qualquer coisa é arte e qualquer pessoa é artista. Até a publicidade encarnando a ideologia moderna prega o não limite para o consumo. Aliás, outro dia li um ensaio sobre as relações entre o dinheiro e a tragédia, no qual o autor dizia que a tragédia apareceu na Grécia depois do surgimento do dinheiro. A riqueza traz a ilusória sensação de sem-limite, de que quem tem dinheiro pode tudo.

Se eu fosse pensador francês, um Derrida, um Barthes, um Foucault, um Lacan, com aquela mania e facilidade que os franceses têm, eu criaria uma nova disciplina: a “limitologia”, ciência que estuda a questão dos limites em todas as disciplinas. Da gramática ao trânsito, da ecologia à educação, da arte à física. Creiam-me, ia ficar rico e famoso. Daria aula na Sorbonne, seria traduzido no Brasil e aqui fariam tese sobre a originalidade do meu pensamento.

Enfim, romperia os meus limites.
__________________________________________
*Affonso Romano de Sant’Anna  - Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países.
Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória.
http://www.affonsoromano.com.br/
Fonte: Correio Braziliense online, 21/02/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário