segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A diversidade sob o olhar da antropóloga

Dora e Gilda nuas
Ana Lúcia E. F. Valente*
Conheci Dora Watts e Gilda Fox às vésperas do carnaval, neste ano, num dos mais nobres bairros de Brasília. Muitos superlativos poderiam descrevê-las: animadíssimas, muito coloridas nas roupas, perucas e maquiagens usadas, imensamente saradas, sorrisos mais abertos do que o comum, equilibradíssimas em seus saltos altos... Dançaram com a habilidade de quem conhece passos de balé, estendendo as pernas em ângulo de quase 180º em relação ao corpo. Também dublaram músicas conhecidas dos convidados presentes na festa de aniversário de 18 anos da filha de amiga querida, que teve a brilhante ideia (tal qual purpurina, paetês e miçangas douradas, prateadas, rosa-choque...) de transformar aquela comemoração em momento inesquecível. Poucos, talvez, tenham podido associar o repertório musical escolhido ao filme Priscila, a rainha do deserto, de 1994, pelo simples fato de a faixa etária majoritária, ali representada, ser recém-nascida à época ou ainda muito jovem (claro, relativizando, pelos meus parâmetros cronológicos). Mas o alcance dos efeitos sobre as mentes de espectadores ou não de um filme tornado cult de gays, transexuais e drag queens é incalculável.

Embora a performance tenha sido contratada por tempo determinado, alguma reação diferente ocorreu, para além do acordo mercantil, especialmente relacionada à fórmula que reuniu alegria, respeito e curiosidade num mesmo tubo de ensaio. Foi Gilda quem explicou com paciência a uma pessoa formada em química o que as tornavam drags e não outro designativo, num amplo leque de opções que, por vezes, e inadvertidamente, confunde preferência sexual e escolha profissional, mesmo que confundidas estejam. E, (para não perder o trocadilho), com enormes leques multicores, toda a explanação “professoral” foi devidamente ventilada e interpretada, fazendo com que esvoaçassem os cabelos da interlocutora. As conversas com outros convidados foram muitas e versaram sobre os mais variados assuntos, ao gosto do freguês, que ambas tratavam de acompanhar com gentileza, inclusive respondendo com zelo às questões mais picantes, próprias da adolescência em face da diversidade. Foi a partir desse misto de empatia e de alguma cumplicidade que obtive a autorização para vê-las desnudarem-se.

Ao entrarmos no quarto, onde horas antes vestiram suas personagens, Gilda sentou-se no chão e Dora na cama; eu a seu lado. As perucas das duas foram as primeiras a serem retiradas e podia imaginar o calor e a coceira que suportaram. Em razão da proximidade, prestei maior atenção em Dora, que, em seguida, ficou livre dos longos cílios. E pode até ser delírio meu, mas a cada movimento com o lenço umedecido com o qual removia a maquiagem, sua voz e expressão mudavam. Ambas também se despiram de saltos, meias, roupas, até ficarem apenas trajadas em calções de malha preta, e rapidamente vestiram camisetas, como se estivessem envergonhadas. Daqui em diante é preciso mudar o pronome pessoal feminino plural para o masculino: Dora e Gilda nuas estavam irreconhecíveis! Os corpos, as vozes, os gestos, as expressões eram outros. A beleza e a sensualidade também. Nuas, passaram a ser “eles”: Raphael e Emanuel (Manu). Artistas (e com o nome artístico de drags podem ser acessados pelo Orkut). Atores. Tímidos. Ao que parece, ante a minha surpresa e ao grande prazer manifestado por tê-los conhecido.

Durante o processo de transformação nós três fomos interrompidos por duas vezes, tudo indica motivadas pela preocupação com o que “estaria ocorrendo entre quatro paredes?”. Afinal, para outrem, não é muito usual situação desse tipo, na qual o ofício do antropólogo faz com que sejamos menos sujeitos aos medos e aos preconceitos. Cuidados pertinentes à parte, que se recomendam ter com desconhecidos, desci as escadas antes deles, que ainda estavam “recompondo-se” e, quando o fizeram, pude constatar o quanto aqueles homens, agora vestidos de outra identidade, puderam e quiseram me ensinar. Foi com um abraço e um beijo que pude lhes agradecer pelo encontro feliz.
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*Doutora em antropologia social (USP), pós-doutorada pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), professora pesquisadora da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da UnB

Fonte: Correio Braziliense online, 22/02/2010

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