terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Matadouros

JOÃO PEREIRA COUTINHO*

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Empresa suíça que oferece suicídio assistido choca pela natureza industrial

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SOU contra a pena de morte. Não interessa se a pessoa a merece. Ou se a solicita. Matar é matar. Excluindo casos de autodefesa, que não entram na categoria, penas capitais são homicídios voluntários. Ludwig Minelli discorda. Quem é Minelli? Segundo a última edição da revista americana "The Atlantic", que dedica ao homem artigo notável e arrepiante, é fundador da polêmica Dignitas, empresa suíça que permite uma morte eficaz a quem não tem uma vida plena. Ou, no mínimo, perspectivas de uma vida plena.

Até o momento, foram mil os clientes da Dignitas que entraram pelo próprio pé e saíram entre quatro tábuas, ou reduzidas a uma urna de cinzas. Existem 6.000 na lista para limpeza futura. E o sonho de Minelli, se "sonho" é a palavra certa para aspiração tão macabra, é poder um dia aplicar o tratamento a qualquer pessoa que o deseje, doente ou não. Nas palavras de Minelli, o suicídio é "o último direito humano".

Verdade que a Suíça não está isolada na lista dos países onde o suicídio assistido é legal. Na Holanda, na Bélgica, no Luxemburgo e em certos Estados americanos, como em Wa- shington ou Montana, doentes terminais podem apressar o fim. Mas a Suíça é mais "liberal" na prática; e a Dignitas é o símbolo dessa liberalidade, aceitando clientes de todo o mundo que viajam para Zurique em busca de uma saída. "Turismo suicida", eis o nome do fluxo. Que nome.

O artigo não tece nenhum julgamento sobre as práticas de Minelli. A lei permite. Cumpra-se a lei. Mas, lendo as descrições do negócio, é difícil não sentir um arrepio de horror pela espinha abaixo.

O horror começa na natureza "industrial" das matanças. O cliente chega. É instalado em quarto da empresa. No dia combinado, e na hora estabelecida, é levado para uma divisão apropriada, onde recebe uma mistura química que vai neutralizando os seus sinais vitais.

Finalmente morto, o corpo é removido. Conta Minelli que, antes da Dignitas ter instalações mais apropriadas, longe da vista comum, o cortejo de corpos provocava indignação entre as vizinhanças burguesas. Imagino.

Depois de removidos, os corpos são levados para os fornos crematórios. Onde eu já ouvi isso? Aliás, as ressonâncias do cenário não ficam pelos fornos. Também se aplicam ao método. Na Suíça, existem quatro grandes empresas que operam no negócio da morte. E todas elas usam pentobarbital sódico, uma combinação poderosa que permite uma morte "limpa" e "indolor". Infelizmente para Minelli, os médicos não são generosos na prescrição do pentobarbital, e a maioria desaprova os entusiasmos mórbidos da Dignitas. Minelli tem procurado outros meios para os mesmos fins.

Nos últimos tempos, tem gaseado os clientes. O espetáculo, admite o próprio, não é bonito de ver. Um corpo moribundo, perpassado por violentos espasmos, nunca é bonito de ver. Mas, garante Minelli, não há qualquer dor no processo.

Acredito. Mas a dor não é apenas uma questão física; também existe uma dor moral que parece ausente da consciência do homem. Minelli e seus cúmplices aproximam-se da morte, e da eliminação física de seres humanos, com a mesma naturalidade mecânica que podemos observar nos matadouros. A lei permite? Sem dúvida.

Mas essa espécie de positivismo ético não nos leva longe: uma história da legislação humana, ao longo dos tempos, seria sempre uma história de brutalidades abençoadas pelos códigos. O negócio de Minelli suplanta os códigos e lida com a pergunta última da nossa condição: seremos apenas meros animais para abate quando a doença nos visita?

P.S.: Defender a TV é arriscado. Existe sempre uma patrulha politicamente correta para quem a caixa que mudou o mundo é, sobretudo, a caixa que corrompe o mundo.

Duas semanas atrás, nesta coluna, escrevi artigo no qual procurava mostrar as virtudes da TV, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento ("Em defesa da televisão", 2/2/09). Dizia eu que a TV era um importante instrumento de literacia, liberdade individual e independência econômica.

Alguns zelotes não gostaram da tese e usaram o e-mail para acusações severas de "rebaixamento cultural"". Não respondo. Exceto para citar o final do texto: "Quando as "elites" criticam a televisão, o principal receio delas não são as "más influências" das novelas. São, ironicamente, as boas influências. Porque as "elites" sabem que, se o povo continua a imitá-las, um dia será como elas".
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*João Pereira Coutinho (Porto, 1976) é um jornalista e comentador político português. Atualmente colabora com o Correio da Manhã e com a Folha de S. Paulo (Brasil). Algumas das crónicas publicadas de 2005 a 2007 neste jornal já foram publicadas em livro (Avenida Paulista, 2007). Foi co-autor do blogue A Coluna Infame, juntamente com Pedro Lomba e Pedro Mexia, entre 2002 e 2003.jpcoutinho@folha.com.br
Fonte: Folha online, 16/02/2010

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