segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A vida light

LUIZ FELIPE PONDÉ*
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O "progressista" se vende melhor entre pessoas "chiquinhas-cultas" e solitárias

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SERIA A vida frágil? Uma aluna me respondeu esta pergunta assim: "A vida burguesa é frágil". Esse é um erro de quem pensa que a miséria humana foi inventada pelo capitalismo. Culpa de professores, sociólogos e filósofos. O capitalismo é apenas uma face da fragilidade. Mas pensar que a vida seja frágil apenas quando é burguesa é também uma forma, ainda que chique, de se enganar.

Pensar que a vida melhorou na modernidade me parece também um engano. Como me lembrou um aluno recentemente: "As soluções modernas para a vida são como remendos em feridas incuráveis" (mais ou menos isso), diria o filósofo romeno radicado na França Émil Cioran (século 20).

Mas como é boa a vida das pessoas simples! Não me refiro necessariamente aos pobres, para quem café da manhã, almoço e janta resumem a esperança e o ideal do dia a dia (e nem é apenas assim, porque figuras como Jesus e espíritos afins os ajudam no dia a dia). A vida deles não me parece fácil nem um pouco.

Refiro-me a quem lança mão de artifícios (valores da moda, teorias políticas, marketing de comportamento, concepções prontas de mundo e similares) para enfrentar a falta de sentido das coisas. O sentido da vida se arranca das pedras e não dos céus ou das teorias. Os lábios dos que buscam sentido estão secos como os de quem vaga por um deserto. Quer um exemplo de pessoa simples? Qualquer um que se defina diante da vida como "conservador" ou "progressista" (estereótipos).

Aliás, quem se define assim, me parece, o faz por marketing pessoal, ignorância ou simples má fé. Normalmente o "progressista" se vende melhor entre pessoas "chiquinhas-cultas" e solitárias, mas o "conservador" se vende bem em igrejas, associações de raivosos e afins. O filme "Amor sem Escalas", com George Clooney, é um bom teste para ver se somos simples. Seria um filme "conservador" ou "progressista"?

Condenaria ele a vida pós-moderna e seu hino ao individualismo "hard" (porque, ao final, defenderia a vida familiar e o casamento) ou, ao contrário, defenderia ele mulheres que só pensam na carreira e que fazem de seus maridos que ganham menos do que elas coitados traídos (porque elas estariam colhendo os merecidos frutos "benignos" da emancipação feminina contra séculos de opressão)?

O roteiro é quase didático (digo como qualidade positiva) ao expor a insignificância desta oposição "conservador x progressista" quando se trata de narrar o estrago moderno sem qualquer possibilidade de cura ou retorno.

Há um desfile de temas típicos do debate contemporâneo: família, amor, valores morais, falta de vínculos, conflito de gerações, seres humanos como mercadoria no capitalismo selvagem e impacto das mídias high-tech. Clooney é um típico pós-moderno feliz: "I like to travel light" ("gosto de viajar leve", credo pós-moderno, "viajar" aqui significa "viver"). Isto é: sem vínculos.

Seu personagem, além de viajar pelo país demitindo gente (o que, no filme, marca a condição miserável da vida sob o regime capitalista), faz conferências motivacionais para ajudar as pessoas a viverem com poucos vínculos e descobrirem que essa vida "light" é a melhor.

Uma mulher (como sempre, quando se trata de homens que gostam de mulheres) será o principal agente de sua queda. Ela porá o modo de vida de nosso pós-moderno bem-sucedido sob xeque-mate, juntamente com pequenos dramas familiares e mudanças no seu cotidiano de trabalho que lembram a ele sua própria efemeridade. Ela o derrotará quando ele se apaixonar e buscar vínculos. O filme destrói sua tese do pós-moderno "light" e feliz.

Mas calma aí! Tampouco o filme narra a redenção do pós-moderno egoísta pelas mãos de suas irmãs ou pela "bela" vivência do amor. Ao contrário, o papel do amor aqui é de destruir a bela vida pós-moderna, sem deixar nada no lugar.

Antes do amor, ele se deliciava em ser livre e sem vínculos, depois, ele vagará pelos aeroportos e hotéis como alguém que sabe que o amor faz mal: os casais podem sim ser infiéis e as famílias neuróticas, ridículas e solúveis em água. Ele já sabia disso, apenas teve a prova na carne. Mas não terá sido em vão: pequenos gestos de generosidade marcarão seu amadurecimento.

Enfim, a consciência tirou de nosso herói a leveza que toda forma de ignorância carrega, mas não trouxe felicidade, como sempre. É um filme de gente grande.
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*Luiz Felipe Pondé é filósofo, doutor pela Universidade de São Paulo e Université de Paris VIII e professor do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências da Religião da PUC-SP. Escritor e colunista da Folha.
ponde.folha@uol.com.br
FONTE: Folha online, 22/02/2010

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