domingo, 28 de fevereiro de 2010

A volta

Rubens Alves*
01/05/64: essa é a data carimbada no meu passaporte. Num céu puro e sem nuvens o avião da Branniff sobrevoava as paisagens lunares dos Andes, flutuando imóvel, ronronando à moda de um gato. A neve branca dos picos fazia contraponto com o cinzento das montanhas nuas. Na terra nem um verde que sugerisse vida... Procurava sinais da presença humana mas não os encontrava. Olhando para baixo com olhar perdido eu imaginava que deveria haver camponeses andando por trilhas solitárias. Eu tinha inveja deles a despeito da solidão. Eles não tinham medo. Eu tinha.

Voltava para casa depois de nove meses de ausência. Nove meses de saudade. Nove meses é tempo para o esquecimento fazer o seu trabalho de cura da saudade. Depois de nove meses já não mais se choram os mortos. Pois quando voltei meu filho menor, de 2 anos — eu fantasiei que ele viria correndo para mim de braços abertos... — não me reconheceu. Olhou-me, um estranho, e teve medo. Recusou-se a vir comigo. Agarrou-se no colo do tio, sem reconhecer aquele ser estranho que usava chapéu que lhe estendia os braços...

A palavra “retorno” traz consigo sempre uma sugestão de felicidade. Pensei em “retorno” e nalgum lugar da minha memória o Nelson Freire começou a tocar ao piano a Sonata do Adeus, de Beethoven. Quis certificar-me. Levantei-me e fui até a mala onde guardo as partituras que toquei num passado distante. Não sei porque as guardo. Para mim são inúteis. Mais que inúteis: elas doem. Elas são como cartas de amor de uma namorada que me abandonou. Eu jamais as toco. Perdi a pouca competência que tive e que me permitia tocá-las. Nas poucas vezes em que voltei a elas só tive sofrimento. Agora mesmo, mesmo sabendo qual seria o resultado, tentei tocar a sonata em dó maior de Scarlatti — um assombro de leveza quando Horowitz a toca — e foi um desastre. Bach, Scarlatti, Mozart, Chopin, Debussy: o certo seria dá-las para um conservatório.

Por que não as dou? Acho que não dou porque houve um tempo em que pensei que elas me amavam e que se eu ficasse assentado debaixo da sua janela por cem dias elas me deixariam entrar. Como na estória oriental. A mulher amada lhe prometera que se ele se assentasse por cem dias debaixo da sua janela ela lhe abriria a porta e eles se abraçariam. Aos noventa e nove dias, entretanto, ele experimentou o “satori” — ficou iluminado, viu como nunca tinha visto: pegou o seu banquinho e foi-se pra nunca mais voltar..

Foi assim que aconteceu comigo. Assentei-me e esperei. Percebi que mesmo que me abrissem a porta eu seria incapaz de tocá-las. Eu sofria de impotência musical... Resta-me guardá-las como memórias de um amor que foi, da mesma forma como um amante abandonado guarda numa gaveta as cartas de um amor desfeito amarradas com fita. Minhas partituras são a minha correspondência amorosa que não consegui levar à frente...

A minha casa está cheia de objetos inúteis como as minhas partituras. Eu não os jogo fora porque são moradas de memórias. Um empresário conhecido contratou uma firma especializada para decorar seu enorme e rico apartamento. Lá está ele, decorado com caros objetos de arte. Mas eles não falam. São objetos sem memória. Não têm estórias para contar. Muita beleza é sem assunto. Acontece o mesmo com as pessoas. Minha mãe me contava a estória de uma princesinha que, ao falar, de sua boca saltavam sapos e cobras...

O primeiro movimento da sonata se inicia com três acordes descendentes vagarosos e tristes, como se fosse um lamento:

Sol-mi fá-si mi-sol

E sobre os acordes alguém escreveu — não sei quem foi,, poderá ter sido o compositor — as sílabas

“Le” “be” “wohl”

Como se não devesse pairar dúvidas sobre o que eles, os acordes, estavam dizendo na sua tristeza: “Lebewohl”. Adeus.

O segundo movimento, um “andante espressivo” em que o piano desenha o triste perfil da “ausência”.

E o terceiro, “vivacissimamente”, “retorno”, quando os amantes se reencontram e se abraçam. O universo inteiro se enche de alegria. Quando os amantes de abraçam o universo está em ordem. Não há o que esperar.

Até um mês antes eu vivera a alegria do “retorno”. A volta seria um momento de felicidade

Mas aí o “vivacissimamente” se desfez numa série de acordes dissonantes.... Foi após uma das minhas excursões downtown para ajudar a passar o tempo. Eu já havia terminado todas as minhas obrigações acadêmicas, cursos e tese. Podia me dar ao luxo de vagabundear para matar o tempo. “Matar o tempo” era o que eu mais queria, pois era apenas o tempo que me separava das pessoas que eu amava. Assentado no vagão do metrô olhei sem interesse para um homem assentado à minha frente. Não vi o seu rosto que o jornal cobria. Mas vi a manchete que lhe era indiferente. Era mais que provável que o seu jornal estivesse aberto na página dos esportes. Os homens respiram e comem esportes. Mas aquela manchete indiferente ao homem que lia o jornal transformou o meu sangue em gelo líquido. Na primeira página, manchete, estava escrito: “Revolution in Brazil”. Era a tarde do dia 1º de abril do ano de 1964. O mundo com seus 10 mil jardins coloridos repentinamente ficou cinza e se encheu de lobos. Talvez o meu retorno ao Brasil significasse prisão.
__________________________________
*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 28/02/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário