domingo, 14 de março de 2010

'Candidato', o cândido

Rubem Alves*

Meu amigo Elba me deu uma surpreendente informação etimológica: a palavra “candidato”, nas suas origens, vem de “cândido”. O candidato tinha de ser cândido, puro. Há um produto de limpeza chamado “cândida”. Sei dos seus poderes para limpar as coisas de cozinha. Não sei se, ingerido, teria o poder de tornar “cândidos” os candidatos. Desconfio. Parece que existe um projeto no sentido de proibir a candidatura dos candidatos de mãos sujas. Sou cético sobre os seus resultados. Candidatos de mãos sujas não aprovam leis que proíbam “mãos sujas”.

Dirão que estou padecendo do pessimismo dos velhos. Mas Albert Camus era muito jovem, tinha apenas 33 anos de idade, quando escreveu o seguinte: “Cada vez que ouço um discurso político ou que leio os que nos dirigem, há anos que me sinto apavorado por não ouvir nada que emita um som humano. São sempre as mesmas palavras que dizem as mesmas mentiras. E visto que os homens se conformam, que a cólera do povo ainda não destruiu os fantoches, vejo nisso a prova de que os homens não dão a menor importância ao próprio governo e que jogam, essa é que é a verdade, que jogam com toda uma parte da sua vida e dos seus interesses chamados vitais.”

Guimarães Rosa sentia também o que sinto. Numa entrevista a Günter W. Lorenz ele disse o seguinte: “Eu não sou um homem político, justamente porque amo o homem. Os políticos estão sempre falando de lógica, razão, realidade e outras coisas no gênero e ao mesmo tempo vão praticando os atos mais irracionais que se possa imaginar. Talvez eu seja um político, mas desses que só jogam xadrez quando podem fazê-lo a favor do homem. Ao contrário dos “legítimos” políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. Sou um escritor e penso em eternidades. O político pensa apenas em minutos. Eu penso na ressurreição do homem.”

Não é por acidente que Guimarães Rosa tenha comparado a política ao jogo do xadrez. No xadrez pouco importa o estilo do jogador. Qualquer que seja o estilo, a lógica do jogo é sempre a mesma. Quem se dispõe a jogar o jogo tem de se submeter à sua lógica. O Lula estava certo: se Jesus estivesse na política ele teria de fazer pactos com Judas. A lógica do jogo da política é a lógica do jogo do poder. Enganam-se aqueles que pensam que o fim da política é a produção do bem comum. O objetivo da política é o poder - e os atos políticos dirigidos à produção do bem comum são apenas meios para se atingir esse fim que é ou a tomada do poder ou a manutenção dos poderosos no poder. “Os fins justificam os meios”, disse o mestre da política Maquiavel. Um ato que levasse ao bem comum mas que, ao mesmo tempo, diminuísse o poder dos que estão no poder, ou aumentasse o poder dos adversários políticos seria, do ponto de vista político, um ato suicida: não deveria, jamais, ser executado. Na hierarquia dos valores políticos o bem do povo é inferior ao exercício do poder. Essa é a razão porque, com freqüência, políticos tratam de eliminar as coisas boas que seus antecessores, adversários, realizaram. É a forma aceitável de assassinato: matar pelo esquecimento.

O ideal de ética na política não pode ser realizado. Somente os fracos invocam os argumentos éticos. Porque eles são a única arma de que dispõem.

Já se disse que a guerra é a continuação da política por meio da violência. Isso é verdade. Política e guerra é o mesmo jogo. A diferença está em que enquanto na política o poder aparece disfarçado pela aparência de paz, na guerra o poder perde os seus pudores e se apresenta na sua nudez: a violência.

Da mesma forma como é inútil trocar os jogadores, porque o xadrez continuará a ser jogado com as mesmas regras, a troca de políticos e de partidos tem apenas o efeito de mudar o estilo do jogo, sem alterar a sua essência. Se eu estivesse no lugar do presidente as regras do jogo do poder me obrigariam a abraçar os mesmos políticos que, em tempos passados, execrou. Naqueles tempos eles eram inimigos a serem destruídos; mas agora eles são possíveis aliados que devem ser abraçados.

A razão filosófica para a existência dos três poderes independentes nas democracias não se deriva de necessidades funcionais. Deriva-se da necessidade de espionagem constante: é preciso que os que estão no poder se vigiem uns aos outros. Na política o comportamento ético é um resultado do medo de ser apanhado com a boca na botija. (mesmo apanhados com a boca na botija os políticos não se enrubecem...)

Mas — eu me pergunto — e se os três poderes forem, todos eles, compostos por raposas? Raposa não vigia raposa. Raposa se alia a raposa...
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 14/03/2010

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