quarta-feira, 10 de março de 2010

Militância e corrosão do caráter

Roberto Romano*

Partidos autoritários tentam moldar a política numa estrutura vertical, impondo à sociedade a rigidez do quartel. Escravo sem uniforme, o militante é soldado. Tal mentalidade surge nos que obedecem de modo automático. Na estrutura militar de consciência, o pior desatino consiste em desobedecer às ordens. O mesmo ocorre nos partidos políticos que imitam exércitos. Se as bases ousam ir contra as palavras de ordem, sua traição deve ser punida. A liderança é vista como a cabeça decisória da sociedade e do Estado. Quem, fora dela, se imagina livre e capaz de tomar decisões, recebe o estigma de inimigo. As mentes que não colaboram para a escravidão generalizada conspiram como “golpistas” no partido, na arena pública ou na imprensa.
Não podem coexistir a estrutura estatal democrática e partidos idealizados como batalhões. Existem diferenças entre as forças armadas e tais seitas. Um soldado sobe a escala hierárquica seguindo regulamentos. Chegar ao nível superior não exige pedir favores, efetuar vendas de valores, cometer espionagem, levantar calúnias em redações, laboratórios ou cortes de justiça. Os seres excepcionais confirmam a regra. A obediência militar não enriquece ninguém. Nos partidos com ossatura militar, ela não é tão ampla, pois gera privilégio no consumo (lojas especiais para os quadros, casas de campo, viagens aos estrangeiro mesmo que monitoradas pelos serviços de inteligência, etc) e nos cargos. As transações governamentais, no plano superior da “carreira revolucionária” passam pelos bolsos como “justa retribuição” pelas batalhas em favor da massa oprimida. No partido, a forma piramidal gera a corrupção em favor dos dirigentes. Alemanha nazista ou URSS, a corrupção faz dos quadros pessoas incomuns. Mente a fábula da revolução, cuja aurora seria espartana. A corrupção dos quadros segue o poder do partido. A ladroagem parece modesta, mas no fim... Poderoso o partido, a corrupção opera em favor dos simples militantes. Na queda da URSS os militantes (sobretudo os policiais) exibiam quadrilhas públicas e privadas. Sua riqueza, extraída nas torturas e chantagens contra os cidadãos, já tem origem na tomada do poder.
A segunda coisa produzida pelo partido militar é a corrosão do caráter que ocorre em sentido pessoal e civil. O militante aprende que sua pessoa nada vale fora do coletivo. Se precisar mentir, caluniar, usar chantagem contra os cidadãos ou seus próprios companheiros, ele o faz. Nele, as fibras morais são frágeis.
Na militância os jornalistas, antes responsáveis diante do público, respondem apenas perante a direção do partido. O mesmo ocorre com promotores, juízes, docentes, engenheiros, médicos, sacerdotes. Semelhante metamorfose mina a fé pública. São unidos os processos corrosivos, o da função e o do caráter. Porque julgam a causa do partido superior à vida civil, os militantes consideram normal ocupar sinecuras. Como os espaços elevados possuem privilégios, cada grupo ou indivíduo se esmera em bajular quem ocupa o poder, o que gera calúnias, prêmios por delação, etc. Na mesma proporção em que adulam os donos do mando, mordem os sem poder.
A forma vertical permite ação coordenada contra o Estado democrático. O partido gera privilégios internos, na espera de os espalhar quando controlar o Estado. A crença na direção onipotente une-se à divisão entre o “nós” (os bons, os militantes) e o “eles” (que não têm a graça da revelação partidária). Para obedecer, o soldado deve acreditar na hierarquia. E o militante? “Ninguém dentre nós (...) pretende ou pode ter razão contra seu partido. Definitivamente, o partido tem sempre razão (...) Não se pode ter razão a não ser com e para o partido, porque a história não tem outras vias para realizar sua razão”. (Trotsky, 13º Congresso do PC, URSS). Se tal é a razão, quando o partido se mostra assassino o primeiro a ter sua carne e mente destruídos é o militante. Após esmagar os companheiros, no caso Kronstadt, o líder recebeu uma picareta como prêmio. Hoje, os militantes são, eles mesmos, picaretas a serviço da ignomínia.
________________________________________*Roberto Romano é professor de Ética e Filosofia na Unicamp
Fonte: Correio Popular online, 10/3/2010

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