sexta-feira, 30 de abril de 2010

Como se faz a opinião pública

CARLOS HEITOR CONY*
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Ele era uma espécie de profeta retroativo,
que tudo previra,
tudo sabia e explicava

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A NECESSIDADE de encher espaços nos jornais, nas rádios e, sobretudo, nas televisões criou, ou melhor, ampliou o número de pessoas entrevistadas que prestam depoimentos ou testemunhos sobre determinados fatos, comentam situações, dão aquilo que, desde tempos imemoriais, chamamos de palpite.

Nos jornais e nas rádios, não se vê a cara do sujeito. Depreende-se apenas que ele está dizendo o que pensa ou acredita que pensa. Tolera-se assim seu depoimento ou seu testemunho sem avaliar o mérito da questão em si.

Na TV é diferente. A cara aparece em close, com suas rugas, as sobrancelhas crespas ou grisalhas, o olhar varado pela luz da verdade, a boca escolhendo as palavras definitivas que encerram a questão de forma inapelável.

Seja qual for o assunto, a convicção do depoente é sempre a mesma. Esperou-se tanto tempo, perderam-se tantas oportunidades, criaram-se tantos equívocos -e ali estava a solução de todos os problemas, o poço da verdade, captada em seu momento indestrutível.

Outro dia, num desses programas da madrugada, revi a figura do notável historiador, já falecido, que, até os 50 anos, era apenas médico no Rio Grande do Sul e, depois dos 50, se tornou especialista em tudo aquilo que aconteceu ou desaconteceu nos anos 20 e 30 do século passado. Era a sua especialidade, tornou-se o oráculo.

A tragédia de Hiddenburg, a Revolução de 30, a Guerra Civil na Espanha, o Campeonato Mundial de 38, Carmen Miranda indo para os Estados Unidos, o Estado Novo, todo o movimento integralista, a ascensão de Hitler, as bicicletas de Leônidas da Silva, os grandes sambas de Ary Barroso, as prisões de Prestes, tudo o que aconteceu naquelas duas décadas tinha nele não apenas o testemunho ocular da história, mas uma espécie de profeta retroativo, que tudo previra, tudo sabia e explicava.

Sua expressão era de desdém para com os fatos, tal como eles passaram para as outras gerações. Lia-se no seu rosto, mais do que em suas palavras, a velada queixa, "tantas coisas importantes e mal contadas, e eu aqui, dando sopa, e só agora se lembraram de ir para a única fonte da verdade!".

O pior veio depois. Substituindo o competente historiador na telinha, apareceu a minha cara falando sobre outro assunto, mas com a mesma expressão facial: a de dono absoluto da verdade. Sempre que posso evito dar este tipo de testemunho; quando querem saber alguma coisa de meus livros, evidente que topo, afinal eu os escrevi para isso mesmo, dar a minha visão de mundo através da ficção.

Mas geralmente os entrevistadores querem mais e querem tudo. Até sobre disco voador já fui perguntado. Respondi prontamente que não acreditava em tais entidades e achei que já tinha dito tudo o que me competia. Mas quiseram saber por que não acreditava e aí a coisa se complicou. Bem verdade que, se acreditassem, a coisa ficaria mais complicada, eu teria de provar a existência deles, mas afinal me perguntei: quem é o desafortunado que deseja saber o que eu penso sobre disco voador?

Acredita-se que a soma de todos os palpites, os testemunhos, os depoimentos, as confissões e os desabafos formem aquilo que os especialistas chamam de opinião pública. Há institutos que se dedicam exclusivamente a aferir essa opinião e, uns pelos outros, estão mais ou menos coerentes.

O mesmo não se dá com os cidadãos, geralmente técnicos disso ou daquilo, que abrem o verbo e explicam tudo ou tudo avaliam, sem muita necessidade de aprofundar os assuntos porque o tempo das entrevistas "infelizmente acabou". O entrevistador agradece ao entrevistado, que modestamente admite: "Quem agradece sou eu".

E vai para casa satisfeito consigo próprio, esfregou a sua verdade na cara da opinião pública, daí em diante terá o consolo de ter cumprido a ação heroica de ter proclamado a verdade; se as coisas não são boas para o mundo, para a sociedade, para o equilíbrio cósmico, a culpa não é mais dele.
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Fonte: Folha online, 30/04/2010

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