domingo, 4 de abril de 2010

A "máquina do Big Bang"

MARCELO GLEISER*

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LHC pode ajudar a separar a ficção dos fatos, o objetivo da ciência

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Bem, não é exatamente a máquina do Big Bang, mas chega perto. Semana passada, físicos de dezenas de países trabalhando no Cern (Centro Europeu de Física Nuclear) conseguiram colidir prótons a velocidade próxima à da luz.

O Grande Colisor de Hádrons (LHC), a maior máquina já construída na história da civilização, consiste em um túnel circular de 27 km de circunferência, enterrado 100 metros no subsolo. Feixes de prótons viajam nos sentidos horário e anti-horário, e são forçados a colidir através da ação de magnetos extremamente potentes. As colisões literalmente transformam energia em matéria, de acordo com a famosa equação E=mc2: a energia de movimento dos prótons é transformada em inúmeras partículas, os tijolos fundamentais da matéria. Por isso, os físicos tentam atingir energias cada vez mais altas: quanto maior a energia de movimento, mais pesadas as partículas que podem surgir da colisão.

O LHC acaba de quebrar o recorde de energia, alcançando o incrível valor de 7 trilhões de elétron-volts, equivalente à energia armazenada na massa de 7 trilhões de prótons. Seu concorrente, o Tevatron do laboratório americano Fermilab, atinge "apenas" 1 trilhão de elétron-volts.

As energias atingidas são equivalentes às que existiam a um trilionésimo de segundo após o Big Bang. Daí a qualificação de máquina do "quase" Big Bang. Incontáveis teses de doutorado e carreiras inteiras foram dedicadas à sua construção, que levou 16 anos e custou US$ 10 bilhões. A esperança é que os dados que serão produzidos pelo LHC resolvam alguns dos mistérios mais profundos da física atual. (E gerem muitas aplicações tecnológicas.) A lista de resultados ansiosamente aguardados é extensa, mas eis os mais importantes, em ordem crescente de especulação:

1) Encontrar a partícula de Higgs, que supostamente dá massa a todas as outras partículas que existem, do familiar elétron aos menos familiares quarks. (Claro, ainda não saberemos como o Higgs ganha a sua massa, mas esta é uma outra questão...) Se o Higgs for encontrado, confirmará teorias propostas há mais de 40 anos. Se não for, tornará a existência de massa ainda mais misteriosa, o que é uma possibilidade mais interessante.

2) Encontrar partículas de matéria escura. Matéria escura, como diz o nome, não produz luz. Alguns tipos de matéria ordinária, como planetas e pessoas, também são escuros, isto é, não brilham sozinhos. Mas a quantidade de matéria escura que inferimos existir no cosmo, cerca de 23% do total, é seis vezes maior do que a de matéria ordinária. Sabemos que existe, pois através da sua gravidade ela influencia a matéria que brilha, como galáxias e estrelas. O LHC pode encontrar o candidato mais popular para a matéria escura. Com isso, confirmaria também a existência da hipotética supersimetria, que dobra o número de partículas que existem, proposta 35 anos atrás. Iniciaria uma caça a essas partículas todas.

3) Dimensões extra. Teorias de unificação propõem que as quatro forças que vemos são manifestações de uma só. Em geral, são formuladas em espaços com mais de três dimensões. As supercordas, por exemplo, existem em 9 ou 10 dimensões . O LHC não encontrará essas dimensões, mas pode encontrar traços de sua existência. Dos itens acima, o primeiro provavelmente será resolvido. Os outros dois, ninguém sabe. Uma máquina como o LHC pode ajudar a separar a ficção dos fatos -e esse é o objetivo da ciência. Devemos ter a liberdade de imaginar hipóteses sobre o mundo.

Mas devemos também ter a humildade de aceitar o que a natureza está nos dizendo. Basta ouvi-la.
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*MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "Criação Imperfeita"Fonte: Folha online, 04/04/2010

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