sábado, 8 de maio de 2010

Antonio Bivar

Do luto à letra


O escritor e dramaturgo Antonio Bivar, de volta às estantes, conta como atravessou um período de dor por meio dos escritos reunidos em Contos atrevidos


Antonio Bivar, 70 anos, é um sujeito de espírito aberto e de permanente jovialidade. Por várias vezes, nessas últimas tantas décadas, Bivar soube se reinventar. Primeiro como ator de teatro, depois como dramaturgo, então como escritor. Antonio Bivar já foi hippie, já foi punk e também já foi dândi. Mas talvez Bivar nunca tenha precisado tanto escrever um livro. Contos atrevidos trouxe seu autor de volta às livrarias e — por que não dizer — de volta à vida.

Há quase dois anos, sem muito aviso, sem muito tempo para entender o que se passava, Antonio Bivar perdeu sua parceira intelectual, companheira, namorada, sua cúmplice, a editora inglesa Jennifer Thompson. Os dois tinham se conhecido em Londres, num congresso literário de meados dos anos 90. Jennifer estava saindo de um casamento e Bivar, de início, relutou. “Sempre fui um espírito muito livre”, ele hoje justifica. Mas Jennifer foi se chegando à sua maneira, se chegando até fazer do apartamento de Bivar em Higienópolis, centro de São Paulo, o seu ponto de partida para as muitas viagens do casal. “Então já era ela quem organizava as viagens, quem tomava as decisões.” Juntos, eles foram à Inglaterra, claro, mas também à Itália, ao Chile e, quando as viagens precisavam ser mais curtas, ao litoral paulista. Juntos, procuravam casa no interior do estado. Bivar já estava cansado da grande metrópole cinza.

Quando Jennifer ficou doente, eles preparavam uma viagem até Barranquilla, o norte da Colômbia e o litoral caribenho. Para conhecerem o território imaginário de Macondo, e seu duplo real, Aracataca, terra de Gabriel García Márquez, escritor fascinado pela inglesa Virginia Woolf, a exemplo de Bivar & Jennifer. “Na Inglaterra, viajávamos dias só para ver uma casa, um castelo que abrigava uma pintura citada por Virginia. Era uma brincadeira, eram nossos pequenos trunfos, sabe?”

Jennifer morreu de câncer, em Londres, ao lado de Bivar e da família. Sua morte, seis meses depois do diagnóstico feito em São Paulo, lançou o escritor em um longo período de sombras. Abandonou o luto lentamente, sem nem perceber, em pequenas viagens, em caminhadas ao sol. Carregava um pequeno bloco de notas, onde ia escrevendo, sentado em bancos de praça ou na areia da praia, um punhado de crônicas espontâneas, bem próximas a ele. Sobre sua família, seus amigos, sobre si mesmo, em primeira pessoa. Sobre pessoas que via na rua, ao caminhar.

Na praia do Félix, no litoral norte de São Paulo, entre Ubatuba e Paraty (RJ), um dos lugares preferidos de sua Jenny, Antonio Bivar escreveu, ao longo de duas manhãs consecutivas, os dois contos que formam o núcleo emocional destes Contos atrevidos. No primeiro deles, Praia feliz, permite-se desfiar um rosário de mortes ocorridas a seu redor nos últimos anos, enquanto a pequena multidão de farofeiros põe fim à serenidade praiana. “Entenda de uma vez por todas que até a paisagem já não é mais a mesma”, ele escreve. No segundo, Um dia perfeito, parece se conformar com a p erda que lhe foi mais próxima. Lembra-se de uma canção pop da cantora Lily Allen, LDN, e essa lembrança lhe aquece o coração. “De modo que hoje decidiu virar o jogo, ser feliz, estar de bem com a vida e sentir-se como se tivesse 13 anos.”

Na apresentação de Contos atrevidos, você cita um “período de luto” que o levou a este livro. Poderia contar mais sobre esse período?
Quando eu perdi a Jenny, foi uma coisa repentina. Era uma companhia maravilhosa, porque não era uma mulher de muito luxo, viajávamos para todos os lugares, fomos até para a Patagônia, a Sicília. Já estávamos para marcar essa nova viagem quando, aqui na esquina de casa, ela me disse que não íamos viajar. Ela estava meio amarela, um tipo de icterícia. Foi quando ela descobriu o câncer no pâncreas. Foi rapidíssimo. Ela voltou para a Inglaterra e, em seis meses, morreu. O que senti foi o mesmo que senti quando minha mãe morreu: uma falta violenta, brutal. Fiquei perdido. O luto é uma coisa que demora um tempo. Isso aprendi com minha irmã. Eu falava que ia cortar o luto, mas ela dizia que não era assim, que tinha que deixar passar, que ia embora com o tempo. E foi assim. Escrever este livro, então, era como se fosse um lenitivo para mim.

O livro começa com textos leves, que soam impessoais para quem conhece outras de suas obras, tão autobiográficas. Isso até surgirem os contos Praia feliz e Um dia perfeito. O primeiro trata de perda. O segundo, de renascimento.
Todos esses contos do livro eu escrevi num caderninho pequeno, que eu carregava comigo, e ia rabiscando, ia escrevendo quando surgisse uma ideia. Sempre ao ar livre, sempre em caminhadas. Esses dois contos saíram nessa ordem que está no livro, assim mesmo, um depois do outro, durante o mesmo fim de semana. Eu estava na praia do Félix, com meu sobrinho e os amigos deles. Eu me sentia o velho no meio daqueles jovens. E um dia me saiu um texto triste, tristíssimo, provocado por aquele lugar, que é o Praia feliz. Dei a ele o mesmo nome que eu e a Jenny chamávamos aquela praia. No dia seguinte, saiu um texto feliz, Um dia perfeito.

Um dia perfeito fecha com a frase “Estou, enfim, vivendo plenamente a infância de minha velhice”. Adiante, em Cabana no céu, o narrador faz planos para sair de São Paulo e morar em uma cidadezinha pequena.
O problema é que não sei ainda para onde ir. Tenho procurado. Os lugares estão todos tão detonados... Pensei, por exemplo, em Nazaré Paulista que é uma gracinha de cidadezinha, mas tem um dono. Um caipira poderoso, podre de rico, que põe o mau gosto dele na praça central e você é obrigado a ouvir aquela música sertaneja horrorosa em altíssimo volume. Quero uma coisa assim, bem simples. Aquela ideia de (uma casa com telhado de) duas águas, que você pode ficar de pé em cima de um banco e trocar de lâmpada. Aquela coisa do it yourself, sabe? Bem punk. Não quero ter muita coisa. Até já juntei coisa demais nesta casa. Antes eu tinha bem menos. Quando era jovem, o que eu tinha cabia nesta mala (aponta a uma maleta próxima à cama). Quando viajava, podia deixar na casa de um amigo e pronto. Mas aí fui juntando. Principalmente os livros. De vez em quando chamo um sebo, e passo adiante o que não gosto. Mas sempre tem uns que a gente tem carinho, esses eu vou levar. Minhas edições de Virginia Woolf, Gabriel García Márquez, Pedro Juan Gutierrez, Kerouac e os beats, poetas como Rimbaud, algumas biografias... É só. A vida é tão rápida. Quanto menos coisas para você se apegar, melhor, porque você vai embora e não deixa muito.

E quanto a seus próprios livros?
Como dizem, do mundo nada se leva, mas você deixa muita coisa... Tenho mais de 60 diários. Está na época de eu começar a rasgá-los. Tenho mais de 60 diários. Pegar um pincel atômico e apagar aquelas partes que possam me envergonhar. Apagar todas as partes de sexo, me transformar numa pessoa totalmente assexuada (risos). Esses diários são de uma época em que só conseguia escrever sacanagem. Tentava escrever algo edificante e acabava erótico. Aquele meu livro Chicabum (1991) é pornográfico... Acaba que a família lê e sempre vai ficar aquela coisa assim... Para mim, este livro aqui de contos foi um exercício para ser assexuado.

E olha que são Contos atrevidos... Mas é outro esse atrevimento, não?
Tenho um primo de 84 anos que me disse: pensei que esse fosse um livro pornográfico... Mas estes contos são atrevidos porque são livres na forma. Se você for seguir regras literárias, estes textos não seriam exatamente contos, seriam mais crônicas. E só o que importava pra mim era a ideia do prazer de escrever. Porque estava deprimido. Além da coisa com a Jenny, eu também estava para baixo com a recusa das editoras em publicar meu livro de memórias de infância (Mundo adentro, vida afora; ainda inédito). E aquele livro era tudo o que eu queria, tinha tanto de meu que estava ali. E, de repente, mandava o trabalho para um editor e sequer recebia resposta. Cheguei a pensar se já não era a hora de pendurar as chuteiras.

E Jenny, que poderia o segurar nesse momento, não estava mais com você...
Com ela teria sido diferente. Ela não deixaria que eu me abatesse por conta de editores. A gente viajaria, faria outras coisas... foi a minha grande companhia por 14 anos. E ela gostava muito de mim. Dizia que eu fui a pessoa de quem ela mais gostou nesta vida. Eu nem sei se merecia tanto.

Não tem vontade de escrever sobre ela?
No momento, não. Precisaria ser algo livre para dar conta do que sinto por ela, sem essa ideia de um livro. Não vou ficar insistindo nisso.

Se você e Jenny tivessem se conhecido na juventude, será que o sentimento seria o mesmo?
Ah... Teria sido ótimo. Eu teria sido o homem da vida dela. Ela teria sido a mulher de minha vida. Porque eu tive outras mulheres mas, para dizer a verdade, nenhuma delas gostou tanto de mim. E eu nunca.**

"Um primo de 84 anos pensou que esse livro fosse pornográfico... Mas estes contos são atrevidos porque são livres na forma”

“Está na época de eu começar a rasgar os meus diários (…). Apagar todas as partes de sexo, me transformar numa pessoa totalmente assexuada”

“A vida é tão rápida. Quanto menos coisas para você se apegar, melhor, porque você vai embora e não deixa muito”


Perfil

Autor e tradutor

A trajetória de Antonio Bivar já é de certa forma conhecida por quem acompanha as artes brasileiras. Da infância em São Paulo e Ribeirão Preto até a mudança para o Rio de Janeiro, foi autor de peças marcantes de sua geração, como Cordélia Brasil (1968) e Alzira Power (1969), viveu o exílio em Londres e, de volta ao país, desbundou no Rio dos anos 1970. Aproveitando a abertura da década seguinte, apresentou uma agridoce crônica daqueles anos de chumbo & psicodelia no livro Verdes vales do fim do mundo (1984). Trabalhou, ao lado de Eduardo Bueno, na mítica tradução para On the road, o (anti)clássico de Jack Kerouac, e soube captar o espírito daquele momento ao organizar em São Paulo o festival O começo do fim do mundo, quando pela primeira vez as bandas punks do ABC Paulista se apresentaram na capital (Ratos de Porão, Cólera, Inocentes e afins). Escreveu livro de memórias sobre a juventude, Mundo adentro, vida afora, ainda sem editora.
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Por Bernardo Scartezini
Fonte: Correio Braziliense online, 07/05/2010

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