terça-feira, 11 de maio de 2010

Aprendemos a lição?

Antonio Delfim Netto*
Temos sempre insistido que o "capitalismo" entendido vulgarmente como uma forma de organização da sociedade não é uma "coisa", é um "processo". Não há um "capitalismo". O mesmo nome é aplicado a um fenômeno evolutivo que tem raízes comuns: a propriedade privada, a separação entre os detentores do capital que dão emprego e os portadores da força de trabalho que a alugam, a livre apropriação dos benefícios derivados da iniciativa individual e a organização da produção utilizando uma forma institucional a que damos o nome de "mercados". Sua existência, continuidade, preservação e aperfeiçoamento dependem de um Estado constitucionalmente forte que garanta a paz interna e externa, que garanta uma razoável administração da Justiça e produza outros bens públicos que, por diversos motivos, não podem ser eficazmente supridos pelos mercados. Este Estado deve tributar com parcimônia e inteligência e, finalmente, ser amigável com relação àquela forma de organização.

O importante é entender que o "mercado" não foi inventado. Foi sendo "descoberto" pelo homem ao longo de sua história desde que saiu da África há 200 mil anos. Trata-se de uma evolução quase biológica. O mecanismo de seleção foi a procura de uma forma de organização da atividade econômica que combinasse a liberdade de iniciativa individual com a eficácia produtiva. Essa organização floresceu dramaticamente a partir de meados do século XVIII com a incorporação do progresso científico e tecnológico e, posteriormente, com a apropriação de uma nova fonte de energia, o petróleo. Para reconhecer isso basta saber que até 1750 a população do mundo era de apenas 1 bilhão de pessoas e a renda per capita manteve-se inalterada. Em 250 anos, graças às revoluções agrícola, comercial e industrial, a população cresceu para 6 bilhões e a renda per capita cresceu dez vezes!

Qual o problema, então? São dois. 1) por um lado o homem não quer apenas liberdade individual e eficácia produtiva, que são os instrumentos de sua "humanização": reduzem o tempo material de sua necessidade de subsistência e libertam o seu espírito criador. Ele sente-se mais confortável quando há uma relativa igualdade; e 2) por outro lado, o homem tem necessidade de segurança no processo de "ganhar a vida". Nenhuma dessas duas "necessidades" pode ser oferecida pela organização dos mercados. Aqui, revela-se o papel do Estado indutor capaz de reduzir as desigualdades (com programas abrangentes que aumentem a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos) e reduza a tendência ínsita à flutuação do nível de atividade econômica, derivada do próprio comportamento do homem sujeito a ciclotimias de otimismo e pessimismo.


Os ciclos não são todos iguais, mas a maioria deles é produzida por uma disfunção do setor financeiro quando este, em lugar de servir ao processo produtivo passa a controlá-lo. Se observarmos a economia americana dos últimos 80 anos (1929-2009) verificaremos que registraram-se 14 "recessões" cuja duração, em meses, distribuiu-se conforme a tabela abaixo.

Ela mostra que, em média nos 960 meses, tivemos 158 de recessão (20%).

A recessão mais profunda historicamente registrada foi a de 1929/1933 que durou 43 meses. A segunda, nestes oitenta anos, foi a que vivemos entre 2007/2009. Uma rápida comparação entre elas é apresentada na segunda tabela, no fim da coluna.

Os números mostram a enorme diferença entre as duas. Elas revelam, de um lado, que o Fed melhorou e, de outro, que o Estado foi mais rápido em usar o dinheiro do público à custa de um desequilíbrio fiscal.

Essas duas recessões tiveram a mesma causa, a "falha do Estado": 1º ) com políticas de regulação laxista apoiadas na ideologia de que o "mercado é perfeito e sabe o que faz" e 2º ) numa política monetária frouxa que levou à construção de bolhas no mercado de ativos que os Bancos Centrais teimaram em ignorar.

A luta do sistema financeiro contra a tentativa de regulação no Congresso Americano e o apoio do Partido Republicano, que tem um comprometimento conhecido com ele, mostra a sua irresistível propensão para voltar ao local do crime...
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*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br
Fonte: Valor Econômico – 11/05/2010

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