domingo, 23 de maio de 2010

A Bíblia, os gregos e a criação

À espera de que as recentes pesquisas sobre bactérias sintéticas "sejam avaliadas desde seus detalhes, talvez convém perguntar o que o homem pensa quando diz 'criação'".
A opinião é do jornalista e escritor italiano Armando Torno, publicada no jornal Corriere della Sera, 22-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Os dois biólogos norte-americanos Craig Venter e Hamilton Smith (foto) criaram a vida ou conseguiram combinar pedaços de um DNA já existente? À espera de que as suas pesquisas – que neste sábado foram publicadas na revista Science – sejam avaliadas desde seus detalhes, talvez convém perguntar o que o homem pensa quando diz "criação".

Nesta quinta-feira, no Corriere, o teólogo e bispo Bruno Forte lembrou que a criação da linguagem comum é bem diferente da criação da linguagem da teologia. E esta última também não teve uma história simples. Abrindo a Bíblia, todo leitor se defronta com as célebres palavras que estão no início do Gênesis: "No princípio, Deus criou o céu e a terra". O que significam? Em termos simples, pode-se dizer que nelas é descrita uma ação do Senhor sobre tudo, à qual seguirá um ordenamento.

Nós, depois de milênios de pensamento judaico e cristão, somos induzidos a acreditar que Deus criou do nada, ou seja, lembremos a célebre expressão latina "creatio ex nihilo". Mas ela é fruto de uma reflexão posterior. De resto, justamente àquele "nada" que obsessionou os filósofos durante milênios, se chegará com a especulação grega (os adeptos aos trabalhos dizem "com a ontologia"), que trará também os raciocínios sobre a matéria e sobre a forma. Se localizará naquele primeiro gesto de Deus o mais formidável dos desafios ao nada.

Os filólogos, que dissecam a palavra para extrair uma interpretação confiável, se perguntaram durante séculos que valor tinha o verbo hebraico "bara’" naquela passagem do Gênesis. Originalmente, ele significava "repartir", "dividir", "separar" e apenas no tempo do exílio da Babilônia ele assumirá o valor técnico de criar. E, além disso, notou-se que os únicos dois textos bíblicos que fazem alusão à "criação do nada" são lidos em outros lugares, não no Gênesis: encontram-se no livro da Sabedoria (11,17) e no segundo livro dos Macabeus (7,28). Ambos, porém, são dois livros chamados deuterocanônicos, ou seja, daquele gênero que faz parte do Antigo Testamento cristão, mas não do judaico. Trata-se, em outros termos, de obras que já sentem a influência grega.

Nas culturas antigas, nas origens da nossa civilização, o tema da criação circulou com muitos nomes e envolveu personagens díspares. Há um poema babilônico dedicado ao assunto, intitulado "Enuma elish", e, na mesma região mesopotâmica, o Épico de Gilgamesh lembra o tema da criação do homem como algo semelhante ao modelar de uma figura. Também desponta e adquire força o dualismo que vem do Irã, capaz de contaminar o primeiro cristianismo: há uma "criação boa" de Ahura Mazdah, e há uma "ruim", de Angra Maingu.

Na Idade Média, depois que os Padres da Igreja se fizeram mil perguntas e se deram ainda mais respostas, a problemática já era muito complexa. Formaram-se tendências, escolas, alimentaram-se polêmicas infinitas. Eis, então, que os mestres de Chartres fazem luz sobre o demiurgo de Platão (que não é o Ser Supremo, mas podia intervir sobre a criação). E eis que os grandes da Escolástica, como Alberto Magno e Tomás de Aquino, hipotetizaram, ao invés disso – por sugestão de Aristóteles –, um motor imóvel que move "o sol e as outras estrelas" (para usar uma expressão de Dante). Depois, aparece o "homunculus", que é testemunhado pelo médico e filósofo Paracelso em pleno Renascimento e é criatura do homem, mais do que um ato de Deus.

Mas aqui há coisas a perder de vista. Bastaria acrescentar que, no final do período iluminista, ganha espaço uma tendência anticriacionista com o homem-máquina do filósofo francês La Mettrie, e, no mundo romântico, um fascinante pensador como o alemão Schelling explicará como o poder original do ser não pode não sair fora de si mesmo e não consegue se deter em dar vida ao mundo objetivo.

Depois, existe a concepção indiana, que, nos textos Veda, já permite entrever uma criação que abarca os nossos conceitos de geração, demiurgo, emanação, magia. Mas essa, como se costuma dizer, é outra história.
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Fonte: IHU online, 23/05/2010

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