sábado, 22 de maio de 2010

Brincando de Deus

EDUARDO CRUZ*



A EXPRESSÃO "brincar de Deus" tornou-se popular desde que cientistas e tecnólogos começaram a manipular genes nos anos 1970. De fato, se Deus tinha poder para criar e conduzir a vida biológica e humana, os seres humanos começavam a compartilhá-lo. Nesse sentido, o avanço tecnológico de Craig Venter & cia., não apresenta nenhum desafio novo para a reflexão teológica.

De modo negativo, associam-se desenvolvimentos "divinos" aos amargos frutos do conhecimento do bem e do mal, e de modo positivo, ao exercício da "imagem e semelhança de Deus" descrita pela tradição monoteísta ocidental.

Muito se fala, na teologia contemporânea, nos seres humanos como "cocriadores" do real. Isto quer dizer que esta criação é subordinada a princípios e criações anteriores, transcendentes. De certa forma, isto é destacado pelos próprios cientistas, quando, ao comentarem o feito de Venter & Cia, dizem que não se trata de criar vida sintética, mas de mimetizá-la (David Baltimore).

Assim sendo, tal notícia de uma bactéria sintética traz à baila problemas velhos e novos. Velhos porque, desde que se sintetizou a ureia no século 19, percebe-se a capacidade humana de mimetizar os processos vitais, com as consequentes visões utópicas e catastrofistas.

Novos, porque parece dar plena razão à "hybris" de pesquisadores reducionistas como Craig Venter, para os quais não há obstáculos para a sintetização da vida de baixo (átomos e moléculas) para cima (organismos), a não ser alguns ligados a problemas éticos.

Ao final do artigo que publicaram na "Science", porém, há uma referência dos autores a "questões filosóficas" que tal avanço traz. Seriam as mesmas a que os autores que pregam uma convergência e uma singularidade tecnológicas, como Ray Kurzweil, levantam? Se sim, então a própria questão da natureza humana (e a noção correlata de "imagem de Deus") é levantada.

Não parece ser o caso, a julgar pelas reações até aqui, mas à medida que, com tais avanços científico-tecnólogos se aproximam do próprio homem, mais estas questões filosóficas e teológicas de maior fôlego voltam à superfície. Talvez, malgrado as intenções explícitas, cientistas como Craig Venter se envolvam na "Biotecnologia como Religião" (Leigh Turner), a tal ponto que os teólogos terão que passar a tocha da reflexão teológica para eles...
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*EDUARDO CRUZ é professor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP (Pontifícia Universidade católica de São Paulo)
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe2205201005.htm

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