sexta-feira, 7 de maio de 2010

Crônica eletrônica

Literatura: Mais que a poesia, o romance e o conto, o gênero praticado por quem quer registrar o que ocorre no cotidiano predomina nos blogs brasileiros.

Malini, pesquisador da Ufes que analisou 700 blogs: por meio dessa amostra, "talvez 30% do total dos blogs literários no país, já se podem identificar padrões de comportamento"

Quando começaram a se tornar conhecidos, há cerca de dez anos, muitos blogs não passavam de versões virtuais de "diários", repletos de confissões. Alguns apresentavam veia mais literária, e aos poucos se formou uma aura um tanto mítica em torno de uma literatura praticada em blogs, considerados fonte promissora de talentos. Desde meados da década passada, porém, a ferramenta teve sua utilização ampliada para fins informativos e institucionais, o que ofuscou em grande parte a preponderância literária. Agora, uma nova e inédita pesquisa com 700 blogs literários independentes no país - não abrigados, portanto, em nenhum grande portal - revela a persistência e a importância das expressões literárias espontâneas na internet.
Realizada sob a coordenação do professor Fábio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a pesquisa mostra que o gênero preferido pelos blogueiros literários é a crônica - cerca de 40% deles o praticam -, seguido pela poesia, com 32%.
"Esse resultado me surpreendeu, porque eu sempre lia muita poesia em blogs literários e achava que seria o gênero principal. Mas a crônica é o gênero literário blogueiro, hegemônico. O dado me chamou a atenção e se relaciona ao fato de os blogs terem surgido da necessidade de denúncia e relato do cotidiano. Faz parte da ética blogueira usar a ferramenta como forma de combate e humor, mostrando uma visão mais refinada do dia a dia", afirma Malini, que apresentará o trabalho no XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste (Intercom), entre os dias 13 e 15, em Vitória.
"Encontramos todo tipo de crônica, desde a que se escreve em primeira pessoa, bem pessoal, até aquela mais sofisticada, de maior qualidade literária. O tema privilegiado são os conflitos, sejam eles pessoais, familiares ou amorosos", diz.
Se os blogs literários se mantêm, portanto, ligados à vocação originária de "diário", a característica em nada os enfraquece ou deprecia, acredita Malini. Seria justamente o contrário: "Muitos pesquisadores não gostam de falar em 'diário', mas eu gosto. A dimensão do 'eu' continua muito presente nesses blogs. O 'eu', tradicionalmente bastante questionado na literatura, apresenta no blog uma nova perspectiva. Trata-se de um 'eu' potente, com capacidade de mobilização, que não pode ser classicamente entendido, pois se constitui apenas na relação com o outro: ou seja, é um 'eu' coletivo".
A ideia de pesquisar os blogs literários nasceu de outra pesquisa, de cartografia da blogosfera brasileira, concluída no ano passado pelo Laboratório de Internet e Cultura, coordenado por Malini no Departamento de Comunicação da Ufes. "Constatamos naquele mapeamento algumas áreas fortes no Brasil, como a dos blogs de humor, carregados de ironia, e os de literatura."
De acordo com o professor, os 700 blogs agora estudados compõem uma amostra significativa: "É difícil mensurar a velocidade do que ocorre, porque surgem o tempo inteiro novos blogs, enquanto outros fecham ou se transformam. Mas através dessa amostra, talvez 30% do total dos blogs literários no país, já se podem identificar padrões de comportamento".
A escrita, entretanto, não é a matéria-prima exclusiva dessa literatura: "São crônicas ilustradas com imagens, fotografias, links para players de músicas inseridos na própria narrativa. Faz parte da facilidade do meio. Uma crônica pode ser postada com trilha sonora. O hibridismo de linguagens já é uma realidade. Mas os blogs ainda não são devidamente estudados", lamenta o pesquisador.
Os blogs se relacionam ainda com outro tipo de hibridismo, o de novos "dispositivos", como twitter e redes sociais: "Está havendo um aperfeiçoamento dos dispositivos na internet e o blog é matriz de alguns deles, como o twitter, por isso mesmo chamado de 'microblogging'. No caso dos blogs literários, com textos mais longos, o público não mudou com o twitter, mas foi potencializado", observa. "Às vezes, vemos uma euforia em torno desses dispositivos: acredita-se que vão substituir todas as demais formas de comunicação. Por outro lado, há quem aposte que vão limitar o papel da cultura e enterrar a função da crítica. O fato é que os blogs correspondem a movimentos de liberdade. Refletem uma demanda social de expressão, através de uma nova maneira de constituir o público, não mais o grande público, mas formado por sujeitos ativos e presentes", completa.
São esses sujeitos que possuem o poder de construir e destruir reputações na internet - mensuradas, por exemplo, pela quantidade de vezes em que um blog é "linkado" por outros. "Nos blogs de literatura, percebe-se a busca de uma crítica da produção. A mediação alimenta o surgimento de novos especialistas. É sempre uma construção de reputação vagarosa, ao lado do público", afirma.
Segundo ele, isso provoca um processo muito curioso: o escritor que obtém legitimidade na internet conta com um público crítico, mas também muito fã. "Ocorre, assim, um paradoxo, pois a atividade de escrever exige recolhimento, embora o espaço da web requisite a presença. Cria-se a concepção de que a literatura precisa se manter no terreno da visibilidade. É uma escrita em que paira o exibicionismo. Em caso de blogueiros que viraram colunistas em grandes mídias, é comum haver dilemas relacionados ao narcisismo e ao exibicionismo", diz.
A pesquisa também constatou que os blogs literários se fecham numa ecologia própria: "Blogs de literatura 'linkam' basicamente blogs de literatura, o que não é o caso em outras áreas, com mais diversidade. Há uma identidade muito firme no campo literário da blogosfera, um ritual específico de receber o link e redirecioná-lo. É toda uma geração que cresce produzindo e se lendo entre si, numa espécie de relação entre pares".
Além de crônica e poesia, outros gêneros praticados na internet são o romance, com experiências de folhetins, e o conto, embora sem a mesma expressão daqueles. Apesar da força do "eu" (ou até por isso) - a produção de poemas também traz a marca personalista -, Malini não duvida de que os blogs literários oferecem "um manancial de talentos". "A coisa mais interessante é ganhar no quantitativo. Muitos nomes que vamos ver na literatura ou no roteiro passam pelos blogs. Isso será cada vez mais comum. O futuro vai passar por aí."
Os experimentos de linguagem que observou levaram o pesquisador a concluir que os blogs, apesar das transformações, se reafirmam como "um espaço de liberdade absoluta". Mas entender a nova produção não é fácil: "Trata-se de uma literatura menor, sim, tendencial, e eu diria até que monstruosa, porque não conseguimos defini-la plenamente".
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Por Rachel Bertol, para o Valor, do RioFonte: Valor Econômico online, 07/05/2010

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