terça-feira, 4 de maio de 2010

Da grandeza e da miséria

JOÃO PEREIRA COUTINHO*
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Como é possível estudar a miséria humana na Rússia
quando ela existe na nossa alma?
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SOU UM HOMEM , nada do que é humano me é alheio. Roubo a frase a Montaigne, que a roubou ao romano Terêncio. Não é fácil cultivar essa disposição: aceitar o que é humano é aceitar tudo, não apenas os aspectos solares da nossa existência. É fácil aceitar o amor, o altruísmo, a bondade. Mais difícil é aceitar o ódio, a mesquinhez, a maldade. Mas é impossível escolher. Ou somos tudo ou somos nada.

Orlando Figes que o diga. Uma apresentação do senhor: nos últimos anos, Figes tem sido um dos meus historiadores de eleição.

Descobri-o em "A People's Tragedy" (uma tragédia das pessoas; Penguin). É a melhor história da Revolução Russa que conheço. Ou, para usar a qualificação de Figes, é a melhor história das revoluções russas (várias) que começaram em plena Primeira Guerra Mundial e se estenderam até à morte de Lênin. Em 1924, a velha Rússia estava enterrada e Stálin dispunha dos recursos necessários para tiranizar um continente inteiro. Continuei leitor de Figes em "Natasha's Dance" (dança de Natasha; Picador), uma história cultural da Rússia. Da relação intensa, por vezes patológica, dos russos com a sua "identidade" e com os meios artísticos para a expressar. Antes de Figes, os estudos de Isaiah Berlin sobre o assunto em "Russian Thinkers" (pensadores russos) eram o Everest do gênero. Figes escalou a montanha e substituiu a bandeira no cume.

Finalizo o meu namoro com "The Whisperers" (os sussurradores; Metropolitan Books), provavelmente o melhor dos três: uma história da vida privada sob o regime de Stálin. O comunismo não promoveu apenas a ruína econômica conhecida. Promoveu uma ruína moral, ou existencial, convertendo um povo à delação, ao medo e, atenção ao título, ao contínuo sussurrar dos escravos.

Figes, um super-historiador. E um super-historiador que poucas semanas atrás se viu envolvido no mais bizarro escândalo editorial em Inglaterra. Tudo porque no site da Amazon surgiam críticas aos livros de Figes que não se limitavam a elogiar Figes ("um autor fascinante", "livros assombrosos" etc.).

As críticas partiam para o assalto e o insulto sistemáticos a colegas de profissão e respectivas obras (Robert Service, o conhecido biógrafo de Lênin, Trotsky e Stálin, foi um dos visados).

O "Times Literary Supplement" levantou a dúvida: seria Figes o autor das críticas? Figes, ou um advogado por ele, ameaçou processar o jornal por difamação.

Mas com o tempo, e com novas revelações (o e-mail usado no site da Amazon denunciava o nome de família do autor anônimo), Figes mudou o tom. As críticas, afinal, eram da sua mulher, disse Figes. Ou um advogado por ele.

Só que as críticas não eram da sra.

Figes. Eram do sr. Figes. O próprio, em comunicado, assumiu finalmente a paternidade e pediu desculpas aos visados.

Os visados não queriam acreditar.

Robert Service publicou texto no "The Guardian" em que expressou repulsa e estupefação. Não condeno Service. Mas nada que seja humano lhe deveria ser estranho. E o caso Figes é, sobretudo, um painel admirável sobre a grandeza e a miséria de um homem.

É um painel sobre um reconhecido intelectual que, apesar de tudo, e de tanto, ainda tem tempo e vagar para alimentar os bichos interiores da insegurança e da inveja. Cada livro de Figes é um monumento de erudição, estilo e, já agora, gramagem. Todos eles limparam os principais prêmios da academia britânica.

E, no entanto...

E, no entanto, imagino Figes, nas horas da madrugada, batendo umas linhas de autoelogio na internet e disparando sobre colegas rivais.

Há algo de infantil e mesquinho na empreitada. E há muito de covarde, também. Duplamente covarde.

Pelo ataque anônimo aos seus pares, assim privados de se defender; e pela deliciosa tentativa de desculpas, imputando as ditas à mulher. Não fui eu. Foi a minha senhora. Desculpem-na. Ela ama-me demais. Leio essa odisseia no jornal e depois olho para a estante onde estão os livros de Figes. Que continuarei a ler e a reler, sim, embora lamentando o desperdício de tempo. Não do meu.

Mas do tempo de Figes. Quando Michel de Montaigne mandou gravar a conhecida frase de Terêncio na sua biblioteca, a intenção era evidente: a fundamental investigação que nos deve ocupar e preocupar é a investigação de nós sobre nós.

Por isso pergunto: como é possível perder anos de vida a estudar a miséria da natureza humana na Rússia quando ela existe, em quantidades generosas, dentro da nossa alma?
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*Filósofo português.
Fonte: Folha online, 04/05/2010

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