sábado, 1 de maio de 2010

Entrevista: Miguel Nicolelis, neurocientista

“Não acreditar em si mesmo
foi o grande fator limitante do Brasil
por muitos anos”

Aos 49 anos, o neurologista paulista Miguel Nicolelis integra o seleto time dos ases da pesquisa científica mundial. Nascido no bairro paulistano de classe média da Bela Vista, ele fez um percurso comum aos de sua geração e origem: cursou a Educação Fundamental em escola pública, o Ensino Médio em instituição privada – o tradicional Colégio Bandeirante – e a faculdade de Medicina e o doutorado na Universidade de São Paulo. A decisão de se dedicar às aplicações médicas da computação levou-o à Universidade Hahnemann, nos Estados Unidos.
Seu trabalho no desenvolvimento de próteses neurais (equipamentos eletrônicos que podem ser acionados por sinais cerebrais) rendeu-lhe um lugar entre os 20 maiores cientistas do mundo, conforme levantamento da revista Scientific American. À frente do Instituto Internacional de Neurociência de Natal, foi apontado por Zero Hora como um dos 10 brasileiros de mais destaque em 2010.
Na segunda-feira, Nicolelis fará a primeira conferência do ciclo Fronteiras do Pensamento. A entrevista que você lê nestas páginas foi concedida na segunda-feira passada:

Zero Hora – Como surgiu seu interesse pela neurologia e pela neurobiologia?
Miguel Nicolelis – Pela neurologia, em particular, foi durante a Faculdade de Medicina. Comecei a trabalhar com computação e modelos matemáticos e, de repente, me dei conta de que uma das grandes questões na época, metade da década de 1980, era tentar entender como os circuitos cerebrais funcionam. A ciência da computação estava começando a penetrar na medicina. Percebi que havia possibilidade de estudar esses circuitos de uma maneira diferente. Comecei a perseguir essa ideia em meados de 1983, 1984, comecei meu doutorado e descobri que, para fazer isso, eu tinha de sair do Brasil e trabalhar com pessoas que estavam pensando coisas similares e que eram uma minoria, na época, na neurociência. O Brasil não era então um polo de pesquisa em neurociência como se tornou depois. Foi mais ou menos aí que começou, há 25 anos.

ZH – Seria difícil trabalhar em seus projetos no Brasil?
Nicolelis – Havia grupos bons em São Paulo, Rio de Janeiro, mas, comparados aos Estados Unidos em termos de disponibilidade de recursos, equipamentos e massa crítica, era muito diferente. Tive um choque brutal quando fui à primeira reunião americana de neurociência e vi 30 mil cientistas. Mas foi aí que eu comecei meu aprendizado de como é que se realizam projetos desse porte.

ZH – Qual é a situação do Instituto Internacional de Neurociência de Natal?
Nicolelis – Venho regularmente ao Brasil e a Natal, particularmente, desde 2003, quando se iniciou esse projeto. Já temos uma grande equipe nas áreas de pesquisa, educação, saúde materno-infantil. São quase cem pessoas envolvidas nesse projeto através da nossa organização social, a Fundação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa. Não é um projeto de uma pessoa só, é de uma grande equipe. Para você ter uma ideia, na semana passada eu estava na Kennedy School, em Harvard, uma das maiores escolas de políticas públicas do mundo, dando uma aula sobre o projeto de Natal. A repercussão está sendo enorme.

ZH – O que gerou mais interesse nos EUA em relação ao projeto de Natal?
Nicolelis – O modo diferente de fazer ciência, o uso da ciência como agente de transformação social e de capitalização do desenvolvimento humano, não só dentro de universidades, mas em escolas da rede pública. Temos mil crianças em Natal envolvidas num currículo de educação científica. Acabamos de abrir uma outra escola no sertão da Bahia para 400 crianças. Temos planos de ampliar a nossa escola em Natal, de construir uma nova escola. Um projeto científico de ponta com preocupação social é algo inédito no mundo inteiro, não só nos EUA. Temos sido convidados para falar em Davos (no Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos, Suíça) sobre esse modelo peculiar ao Brasil e que teve uma repercussão muito grande na academia e fora dela.

ZH – A nova teoria do cérebro seria, portanto, multidisciplinar.
Nicolelis – Sim, a abordagem multidisciplinar é uma caracterísitica muito marcante da neurociência da última década. Nos últimos 10 anos, a neurociência se transformou talvez numa das áreas de maior convergência multidisciplinar da neurologia ou da medicina. A nossa abordagem é uma das mais multidisciplinares da área de neurociência. Eu trouxe isso para o Brasil. No Instituto de Natal, temos psicólogos, cientistas, engenheiros, matemáticos, estatísticos, gente de todo tipo de formação fazendo pesquisa sobre o cérebro.

ZH – No caso de Natal, envolvidos num projeto único.
Nicolelis – Sim. Outra questão importante é que o projeto já conseguiu repatriar cientistas brasileiros que estavam no Exterior, jovens cientistas brasileiros que retornaram ao Brasil e estão se fixando em Natal. Essa é uma outra característica do nosso projeto, a da repatriação de cérebros que foram embora e que não tinham perspectiva de voltar ao Brasil. Ainda numa escala pequena, mas que, eu creio, vai se ampliar rapidamente, nós conseguimos reverter esse processo. Essa é uma questão estratégica para o Brasil. Há mais ou menos 11 mil cientistas brasileiros do mais alto nível no Exterior. São pessoas que poderiam contribuir para o futuro do Brasil. Outros países, como China e Índia, têm políticas muito claras de repatriar os seus cidadãos pra retornar às instituições locais. O Brasil precisa de uma política pública com esse objetivo.

ZH – Como o senhor vê a situação da saúde pública no Brasil hoje, no momento em que o tema também está em debate nos EUA?
Nicolelis – Tenho várias críticas ao sistema de saúde americano porque, em não sendo público, não é abrangente, não é democrático, não é acessível, e de certa maneira o Brasil tem uma abrangência muito maior em termos de cobertura da população do que existe hoje nos EUA. O problema é a qualidade, é poder oferecer serviços de saúde de alto nível para a população como um todo. Esse é o desafio para um país como o nosso, que só nos últimos anos começou a fazer investimentos maciços na área de saúde. Estamos ainda aquém daquilo que é necessário, mas, em certos indicadores de saúde pública, estamos muito melhor do que os EUA. O caso clássico é a política brasileira da prevenção e do tratamento do vírus da Aids, que é um exemplo para o mundo inteiro. Por outro lado, o Brasil tem de fazer investimentos maciços para se livrar de certas endemias, como dengue, malária, doenças que ainda não estão sob controle. A dengue se espalhou nas regiões metropolitanas e toda a costa do Brasil. São questões prioritárias para um país como o nosso.

ZH – Como o senhor vê o fato de a população demonstrar interesse pela neurociência, a ponto de programas de TV como o Fantástico, da TV Globo, criarem quadros sobre isso?
Nicolelis – Há 10 dias eu estava dando uma palestra aberta ao público na Biblioteca de Alexandria, no Egito. A palestra foi transmitida pela TV egípcia. O interesse da audiência foi enorme. Em todos os lugares em que falei até hoje, a curiosidade do público pelo cérebro é enorme. O que falta, ou até recentemente faltava, são canais de comunicação que permitam aos cientistas profissionais entrar em contato com a população. Isso é parte do que estamos fazendo em Natal: desmistificar a crença de que o conhecimento científico é só para alguns eleitos que estão nas universidades ou são doutores. Isso é uma balela da Idade Média. O conhecimento científico pertence à sociedade, mesmo aquela que nunca frequentou um laboratório de pesquisa ou um curso superior, pela pura curiosidade e hoje em dia até pela própria necessidade de exercer a sua soberania, de definir questões com consciência do que está fazendo. Estamos só engatinhando, enquanto cientistas profissionais, em termos de comunicar à população em geral o que a gente sabe e o que a gente não sabe também, porque é importante saber comunicar o que não é sabido, o que é mito, o que é apenas imaginação, adivinhação. Existe muito factoide científico que não é verdade, e a população se confunde porque essas informações são veiculadas na TV, na internet, sem nenhum controle de qualidade.

ZH – Quando se iniciou a discussão a respeito das células tronco, por exemplo, uma parte da população imaginou que a cura para muitas doenças estaria disponível no dia seguinte.
Nicolelis – Claro, foi o que ocorreu nos EUA também. O grande problema da ciência moderna é separar o que é fato real e qual é o timeline geral, a previsão do tempo real em que uma pesquisa pura pode se transformar em aplicação clínica. É o que se chama nos EUA de hype, que é tentar vender esperanças que não são reais. Numa questão puramente ética de cientistas profissionais, isso é um cuidado muito grande a ser tomado. Há milhões de pessoas com esperança de que a cura para as suas doenças apareça no dia seguinte. O processo que vai de uma descoberta básica até uma aplicação clínica pode levar décadas.

ZH – Qual é a situação das suas pesquisas de desenvolvimento de próteses neurais?
Nicolelis – É um exemplo muito bom. Essas pesquisas já têm 27 anos. Elas começaram no final da década de 1980. Estamos nos aproximando de levar todas essas descobertas, de quase três décadas – é a minha carreira inteira –, para testes clínicos. Sempre alerto que cada passo é um passo desconhecido, a gente não sabe o que vai encontrar do outro lado da porta, o que pode dar certo e o que pode não dar. Depois de 30 anos, existe uma chance significativa de que a gente possa transformar isso em aplicações clínicas. Quando se faz um teste clínico, por exemplo, de uma nova terapia, você precisa de dezenas de casos. Em alguns casos, você precisa de centenas de pacientes para poder demonstrar a efetividade e a segurança de uma nova terapia. É importante mostrar para a sociedade que ninguém toma uma decisão dessas olhando dois pacientes.

ZH – É uma aposta.
Nicolelis – Claro. Depois dessas três décadas, estamos chegando num momento de descobrir os potenciais de aplicação clínica. A ciência americana é o que é porque, nas últimas sete décadas, os EUA investiram maciçamente em pesquisa, algumas vezes sem saber onde ela ia chegar. Em termos de formação de recursos humanos, de massa crítica pensante, foi um dos maiores investimentos da história do país, dos que deu mais resultados. Os EUA só têm a Apple, a IBM e outras grandes empresas de tecnologia porque o governo americano investiu no treinamento de mentes criativas, de engenheiros, cientistas computacionais, e essas empresas demonstram o que a criatividade do cientista e o que a inovação tecnológica pode fazer pelo país. O meu sonho é que o Brasil siga o mesmo caminho de investimento estratégico. A ciência ,hoje em dia, e eu falo isso há vários anos, é um investimento vital para a soberania de um país. A gente vê, por exemplo, o pré-sal, a Embrapa, o Proálcool pagarem o custo dos investimentos feitos nessas áreas várias vezes, com lucros muito maiores do que o valor investido. Precisamos de mais exemplos assim, não podemos ficar restritos à Petrobras, à Embraer, à Embrapa e ao Proálcool.

ZH – E quando se iniciariam os testes clínicos?
Nicolelis – Estamos trabalhando com consórcio internacional para construir a primeira prótese completa. Estamos ainda realizando experimento em macacos. A gente sempre faz para testar componentes. Nosso objetivo nesse consórcio é nesses próximos anos construir uma prótese integral e, uma vez que ela tenha sido testada em primatas de forma integral, passar pra testes clínicos. Esse é o nosso horizonte agora, um horizonte próximo. Não dá mais para esperar 30 anos.

ZH – Qual é a situação das pesquisas em relação à Doença de Parkinson?
Nicolelis – O nosso laboratório está trabalhando com doenças degenerativas, mas a maior ênfase é em Parkinson. Também estamos trabalhando com modelos em camundongos de doenças ditas psiquiátricas. É uma coisa muito nova, que acabou de surgir nos EUA, há dois anos.

ZH – Como o senhor se sente quando vê, na imprensa, seu nome associado a uma chance de Prêmio Nobel de Medicina?
Nicolelis – Viro a página. Cientista não especula, é muito raro encontrar um cientista que fique fazendo especulação. Evidentemente, sinto-me muito lisonjeado com essa lembrança, mas isso não tem nada concreto. Certamente não é o que guia o meu trabalho, não é? O Brasil tem inúmeros cientistas, pensadores, escritores, economistas ou o próprio presidente da República que têm condições plenas de ganhar o Prêmio Nobel por seus trabalhos específicos. O Brasil tem uma contribuição ao mundo, vários indivíduos fizeram contribuições históricas. Eu, evidentemente me sinto lisonjeado, mas não me coloco nesse grupo de pessoas.

ZH – O que o senhor diria para um estudante universitário que quer se dedicar à pesquisa científica?
Nicolelis – Falo isso sempre para os meus alunos: o fator mais importante dessa decisão é acreditar no próprio taco, acreditar em si mesmo, nos próprios sonhos. Se os sonhos forem sonhados com suficiente perseverança e paixão, não há nada que impeça um indivíduo de realizar aquilo que ele quer. Esse é o único conselho que eu posso dar: que as pessoas acreditem em si mesmas e nos seus sonhos, não importa quão impossíveis eles possam soar e quanto as pessoas possam dizer que eles são impossíveis. Se a gente for imaginar o que os indivíduos já conseguiram fazer e de onde eles vieram, tudo seria impossível. Meu pensamento é que todos devem acreditar em si. Não acreditar em si mesmo foi, por muitos anos, o grande fator limitante do Brasil.
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Reportagem: TATIANA TAVARES
tatiana.tavares@zerohora.com.br
Fonte: ZH online, 01/05/2010

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