sábado, 8 de maio de 2010

J.M. Coetzee

Antônio Xerxenesky*

Em 'Verão', J. M. Coetzee usa a própria vida como matéria de ficção


RIO - Depois de retratar o período da meninice, a adolescência e a formação intelectual, John Maxwell Coetzee, o sul-africano vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, retorna a sua série autobiográfica das “cenas da vida da província” com Verão. O livro dá continuidade à Infância (relançado pela Companhia das Letras em versão pocket) e Juventude, ambos explorações ficcionalizadas da própria vida de Coetzee. Verão, finalista do prestigioso Booker Prize Award, por sua vez, concentra-se na década de 70, quando o autor retorna à África do Sul, torna-se professor e publica o primeiro livro.

Engana-se o leitor que pensa que é necessário ter lido as duas partes anteriores da série para entender Verão. Neste último, Coetzee segue uma estratégia formal bastante diferente. No anterior, Juventude, o autor se valia de uma narração bem comportada em terceira pessoa para descrever aquilo que era obviamente sua experiência pessoal, da mesma forma como o premiado livro de Cristóvão Tezza sobre seu filho deficiente, O filho eterno. Já em Verão, esse estilo está presente apenas na primeira e na última parte do romance. O grande núcleo é composto de entrevistas feitas por um biógrafo chamado Vincent a pessoas que foram importantes para J.M. Coetzee naquela época, agora transformado em personagem de ficção. Até as mencionadas partes (a primeira e a última), onde sua vida é recontada em terceira pessoa, apresentam uma diferença fulcral em relação à Juventude: trazem comentários acerca do próprio texto, como se o livro que estamos lendo fosse um work-in-progress, um romance em estágio de construção.

Em resumo: a nova arquitetura para a série das “cenas da província” que o autor adota em Verão sugere muito mais indecisão, ambigüidade. Textos inconclusos nas pontas, e um centro formado por opiniões parciais, contraditórias. Afinal de contas, quem o personagem do biógrafo escolhe entrevistar inclui colegas de docência, uma prima, uma ex-amante, uma paixão platônica. É através da voz dos outros que relemos toda a produção e o pensamento de Coetzee.

Um conhecimento mais abrangente da obra do ficcionista pode se provar útil, portanto. Vale a pergunta: mas quem são esses outros discursando sobre o autor, se na verdade o livro não passa de uma construção do próprio escritor? Eis o triunfo da premissa de Verão: o jogo de espelhos da representação, tão marcante na obra do sul-africano (de Foe a Diário de um ano ruim) alcança uma espécie de ápice. Algumas criações desmentem outras criações, e o leitor passa o tempo inteiro perguntando-se o que é real naquilo tudo.

Os personagens parecem ganhar vida ao criticarem duramente o autor, e por pouco o leitor não esquece que aquela é uma obra de ficção. Nada mais paradoxal: um romance que escancara seus dispositivos narrativos e seu caráter ficcional acaba ganhando em verossimilhança.

Entretanto, não se trata apenas de uma viagem ao ego de John Maxwell Coetzee. Por trás do aparente narcisismo implícito em se transformar no protagonista da própria obra, o autor, como sempre, aproveita o espaço para vinhetas ensaísticas, comentários críticos e céticos acerca da situação na África do Sul, uma revisão histórica do fim do apartheid e, claro, digressões sobre o papel da literatura na vida das pessoas.

Por outro lado, o mais interessante talvez seja mesmo a parte focada em si. Fica claro, a partir de um certo ponto do livro, que as entrevistas ao qual o leitor tem acesso foram realizadas após a morte do autor/personagem. Diferentemente de Memórias póstumas de Brás Cubas, onde o narrador está morto, aqui o defunto é o autor convertido em personagem. Assim sendo, Verão pode ser lido como uma espécie de investigação acerca da posteridade.

Em um diálogo que é trocado entre o protagonista e sua amante, acerca do que o leva a escrever, Coetzee fala justamente disso: de permanecer enquanto obra, ser lido mesmo estando a vários metros debaixo do chão. Mais ainda: como será visto “a pessoa” Coetzee no futuro? Em que documentos confiarão, se os seus comentários autobiográficos são, sem disfarces, mentirosos?

Sua auto-análise toma rumos inesperados e corajosos. As mulheres o descrevem como um amante frio, um estranho dentro do seu próprio corpo. Alguns familiares conjeturam que é possivelmente homossexual, mas acabam por concluir que a questão é outra, como se o escritor fosse quase um assexuado. O tema do vegetarianismo, tão defendido pelo autor em outros livros (como A vida dos animais) tenta ser explicado em funções psicológicas – um desejo obsessivo de ser bom, gentil, de nunca revelar o seu lado mais baixo e reprovável? Quem sabe.

Na autoficção de Coetzee, enxergamos sua vida cada vez com as lentes mais embaçadas. O que antes se parecia fácil de descrever, de colocar em uma caixa, se revela nuançado, anguloso. Uma autobiografia escrita para provar que nenhum projeto realmente autobiográfico, ou seja, com “desejo de verdade”, pode de fato ser escrito.
____________________
* Escritor
Fonte:Jornal do Brasil - Idéias & Livros  - 08/05/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário