domingo, 9 de maio de 2010

Meditação sobre o nome ‘mãe’

Rubem Alves*


Meu Deus: minha oração, frequentemente, é uma velha canção dos negros escravos norte-americanos, nascida da saudade. Canção de ninar, naquele ritmo gostoso, binário, a mão batendo levemente no bumbum do nenezinho:

“Às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe, às vezes eu me sinto como uma criança sem mãe, longe, muito longe da casa, longe, muito longe da casa...”

Quando a canção vem, ela toma conta de mim, e fica se repetindo. Eu acho que é porque ela tem o poder de chamar, pelo seu nome próprio, um sentimento que mora em mim: uma nostalgia sem remédio, saudade de alguém com a ternura da Pietá na sua face...

Fico imaginando como é que estas palavras se transformaram em poesia: uma mulher negra, escrava, com um nenezinho nos seus braços. A criança que não é sua, a mãe morreu naquela mesma noite, e ela embala aquela coisinha indefesa, e pensa que não existe muita diferença entre ela e a criança, ambas são órfãs, muito longe da casa materna, no outro lado do mar, perdida para sempre.

Martin Buber me contou que, na língua zulu, quando alguém deseja dizer “muito longe”, a pessoa vira poeta, e diz uma única palavra que, se traduzida literalmente, significaria:

“Lá, onde alguém grita: Ó mãe, estou perdido...”

Todos os gemidos são inúteis. Os únicos sons, aqueles dos pássaros, do vento, do bater do próprio coração... E, a despeito disto, o mesmo nome mágico é balbuciado: mãe...

Estranho e belo: o nome que desenha contornos de um corpo de mulher, invocado na dor de uma ausência universal... E o corpo de mulher se transforma em “uni/verso”, um mesmo poema que reverbera mundo afora.

Às vezes oro “Pai nosso...” Mas por vezes o que eu desejo é o rosto de uma mulher. Minha oração fica então diferente, não sei se herética ou erótica:

"Minha Mãe que estás
nos céus..."
Desejo um deus
mulher...
Por dentro sou como
a natureza:
montanhas, abismos,
gelos e sol,
noites e dias,
a vida e a morte.

Mas não é sempre que sinto o fascínio das montanhas. Os mistérios também moram nos abismos. E o gelo pode ser amigo, tanto quanto a noite. Por vezes eu preferiria a chuva que convida ao silêncio e à meditação. Há momentos em que desejo abraçar. Quando me sinto sozinho. Mas há momentos em que quero a solidão. Agora estou escrevendo, mais tarde contarei estórias. O desejo pulsa dentro de mim, como se fosse um coração:

tique/taque,
tique/taque,
isto/aquilo,
isto/aquilo,
pai/mãe, pai/mãe...
Ó Deus! Quem és tu?
Ninguém jamais te viu.

Passas como o vento, e só ficam as marcas da tua passagem, gravadas na memória: o sentimento de beleza, o sentimento de tristeza, o corpo que espera, sem certeza, com um poema na carne. Tua face, nunca a vi. Só conheço as muitas faces da minha saudade. E, se te chamo pelo nome de Pai e pelo nome de Mãe, é porque estes são os nomes da minha nostalgia, no bater binário do desejo.

Como se eu dissesse:

“É assim que sinto a tua falta: um contorno da tua ausência.

Esta é a face que o teu mistério ganhou dentro de mim...” Ausência...

Será que tu aceitas ser invocado pelos nomes da minha espera?

Nas estórias infantis as mães estão sempre ausentes. Chapeuzinho Vermelho, sozinha na floresta (sua mãe ficou em casa). João e Maria, perdidos na mata, abandonados. Cinderela, a mãe morreu, e em seu lugar uma madrasta. E fica aquele grito na solidão: “Ó mãe, estou perdido...”

As estórias são verdadeiras: nenhuma mãe é grande que chegue para satisfazer a nossa nostalgia. Porque esta mãe com que sonhamos teria que ser bela e terna como a Pietá, e o seu colo teria de ser do tamanho do universo inteiro. Nele se deita o próprio filho de Deus. Ó Deus, a nossa nostalgia só será satisfeita se esta mãe viver em ti. Assim, quando do fundo da tristeza gritarmos, “Ó mãe, estou perdido”, ouviremos a resposta maternal: “Meu filho, estou aqui...”
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*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador
Fonte: Correio Popular online, 09/05/2010

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