terça-feira, 18 de maio de 2010

O Estado caridoso

Dioclécio Campos Júnior*

O passo de maior alcance social na história da espécie Homo sapiens foi a conquista da consciência do direito — logo, da possibilidade de socialização do poder. Criou-se, assim, para a sociedade humana, a perspectiva de progressivo distanciamento da vida selvagem resultante da lei natural que garante pleno poder ao mais forte. O conceito de igualdade começou a florescer. O sentimento de solidariedade entre pessoas e povos ganhou terreno. O sonho de um mundo fraterno, sem fronteiras, une gerações de idealistas que buscam tornar realidade a fascinante utopia. As causas que geram e perpetuam a injusta divisão social das pessoas em duas classes, a rica e a pobre, tornaram-se bem conhecidas. São eticamente inaceitáveis. Moralmente vergonhosas. Politicamente sombrias. Humanamente humilhantes. Erradicá-las é o grande desafio para a humanidade no terceiro milênio da civilização.

Alguns valores oriundos de modelos culturais que atravessam os tempos alimentam comportamentos coletivos incompatíveis com as transformações vislumbradas pela evolução do direito. São crenças e convicções, completamente ultrapassadas na sua essência, que remanescem entranhadas nas mentes, resistindo a toda e qualquer evidência em contrário. Por representarem vigorosa força conservadora, mal percebida na sua incoerência, são sutilmente estimuladas pelos detentores do poder, interessados em manter a ordem vigente que fere direitos da maioria e preserva privilégios da minoria.

Exemplo maior é a caridade. Introduzida na vida brasileira pela religião, instrumento persuasivo de que se valeram os colonizadores, enraizou-se profundamente na estrutura da sociedade, emprestando-lhe a lógica em que fundamenta o funcionamento de todas as instâncias do poder organizado no país. Ora, a caridade não pode sobrepor-se ao direito, como base das ações governamentais, sob pena de condenar a nação ao atraso social irreversível.

As pessoas que dependem de ações caritativas para sobreviver são vítimas da negação de direitos. Não são mendigos, são subprodutos da mal velada discriminação que os marginaliza desde o nascimento. Vivem na rua porque não têm lar. São maltrapilhos porque vegetam carentes nos becos, dormem esfarrapados na concretude fria e dura das calçadas, jejuam compulsoriamente entre as migalhas que lhes são dadas pelos transeuntes mais sensíveis. Desfiguram-se, perdem semblante, ocultam a palidez anêmica na sujeira crônica que lhes recobre a pele. Transfiguram-se ao pedir, revivem ao receber.

A sociedade brasileira só será justa e democrática quando a caridade tiver sido completamente substituída pelo acesso universal e igualitário dos cidadãos aos direitos declarados na Constituição. Até agora tem vigorado unicamente a estratégia hipócrita de um humanismo caritativo, entendido como caminho verdadeiro para a chamada inclusão social dos apartados. As políticas públicas refletem, de maneira indisfarçável, essa enganosa postura doutrinária que vem presidindo as ações de todos os governos, desde o surgimento do país. Os pobres continuam a receber as sobras dos ricos. Restos de comida, roupas usadas, objetos supérfluos e desgastados, cobertores já imprestáveis, moedas que nada compram, serviços voluntários, coisas que nada valem. Integram as bondades cristãs por meio das quais as pessoas que possuem dão esmolas às despossuídas, mantendo-se a degradante decomposição da cidadania.

O Estado é o reflexo da sociedade. Age em absoluta sintonia com os ditames da ordem vigente, ampliando, em escala nacional, a relação entre opressor e oprimido que se dá no universo individual. É o império da caridade a serviço dos interesses da elite dominante. A riqueza do país não é dividida, segue concentrada nas mãos de poucos. As bolsas distribuídas aos pobres nada mais são que as sobras dos ricos, repassadas pelo Estado em nome da ascensão social que não acontece de fato, muito menos de direito. Os serviços públicos organizados para atender à demanda da população destinam-se aos pobres. São desqualificados. Bem inferiores àqueles de que se utilizam os ricos. Saúde e educação públicas são provas disso. Se fossem de qualidade, não haveria lugar para a saúde suplementar nem para escolas privadas, que cobrem, com melhor qualidade, as expectativas dos que podem pagar. O Estado brasileiro é generoso para os ricos, e caridoso para os pobres. É a fortaleza da desigualdade que urge desmontar. O direito precisa começar a falar mais alto do que a caridade. Estender-se a todos. Na mesma medida.
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*Médico, professor titular da UnB

dicampos@terra.com.br

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