quarta-feira, 19 de maio de 2010

O milagre desprezado

Paulo Ghiraldelli*
Estava no lançamento do meu A aventura da filosofia, na livraria Cultura em São Paulo. Uma pessoa entrou na fila de autógrafos sem o livro na mão. Ela se aproximou e disse “por favor, peço desculpas antecipadas, não vim para o lançamento, quero apenas saber se você, como filósofo, acredita em vida após a morte, ou se a vida é só isso – morreu, acabou!” Para esse tipo de conversa a minha resposta vem de imediato: a vida não é “só” isso, ou melhor, a vida nunca pode ser qualificada pela palavra “só”.

Não sei se a figura da fila entendeu, mas alguns ao lado entenderam muito bem. Todos que querem “outra vida” precisam, antes de tudo, dizer que essa vida, esse milagre de estar vivo, é algo que não passa de um “só”. Não se dando conta da vida, reduzindo a vida a um mísero “só”, então passam a querer mais uma vida, além da que já possuem. São como gatos ansiosos.

O gato tem sete vidas. Isso o gato brasileiro. O gato americano tem nove vidas – gato do Primeiro Mundo. Mas ambos, quando ficam ansiosos, não vivem nenhuma. Qualquer ansioso por outra vida, quando se apega demais nessa idéia, começa a gastar o tempo da vida. Buscando descobrir como que fará para viver a outra vida, termina por não encontrar muita coisa e acorda já quase tarde para viver essa vida.

Há religiosos que não se preocupam com seus deuses. Estão demais ocupados com a possibilidade de outra vida, principalmente a de seus amigos. Deixam de viver para infernizar a vida dos outros tentando convencê-los de pagar algum dízimo para que estes “comprem” mais vida, quando esta se for. Alguns, inclusive, para valorizar essa mercadoria, afirmam peremptoriamente que a outra vida será melhor. Alguns chegam até a dizer que será eterna. Até que cobram barato pela vida eterna! Uma coisa eterna até deveria valer mais!

Na filosofia, foi Nietzsche quem falou dos “cansados da vida”. Para poder entender tamanho absurdo, ou seja, a existência de pessoas desse tipo, cansadas da vida, Nietzsche recorre a uma tipologia dicotômica. De um lado o fraco, doente, cristão, mulher, escravo, vaca, feminista, socialista, moderno, plebeu; de outro lado o forte, sadio, não-religioso, homem, senhor, leão, não-feminista, não-socialista, não-moderno, nobre. Em cada uma dessas figuras ressurge o ressentido de um lado, e o afirmador da vida de outro. Um desvaloriza a vida à medida que começa a perguntar pelo valor da vida. O outro a valoriza porque a vive, sem fazer perguntas. Mas sabemos que este segundo irá perecer diante do primeiro. A qualquer momento, este segundo irá refletir sobre a vida, irá querer saber o “valor da vida” e, ao fazer isso, não conseguirá nunca mais viver senão como quem tem de se mostrar cansado da vida.

A explicação de Nietzsche é interessante, mas ela parece insatisfatória. Fora do registro nietzschiano, voltando ao mero observar, como que podemos aceitar que algo tão fantástico em todos os sentidos possa ser chamado de “só”? Sim, sim! Sei que Nietzsche disse que isso é uma estratégia dos do primeiro tipo na luta para derrubar os do segundo tipo. Sei que se o forte ganha má consciência por viver e não ficar se penitenciando por ver que outros não vivem como ele, ele irá perecer como forte e irá logo ser um fraco. Então, a filosofia da história de Nietzsche mostrará que o niilismo, a desvalorização até do que seria maximamente importante, é o que guia todo o nosso destino. Mas, ainda assim, tudo isso é muito estranho.

Por que eu ganho má consciência? Por que eu não fico apenas no meu compadecimento em relação ao sofrimento dos que sofrem? Não! Eu faço mais. Eu começo a acreditar que eles sofrem porque eu sou feliz. Eles não vivem porque eu vivo. Ora, essa relação é completamente insana. No entanto, muita gente boa de cabeça acredita nela. Então, eu não peço que a desgraça caia sobre mim. Eu peço simplesmente que todos se convençam que a desgraça é a regra. Que a vida é algo do tamanho de um “só”. Vive-la? Para que? Ela, a vida, é tão pouco! Ela é um “só”. Para ela ser mais, ela precisa de uma outra vida. Com vida, ela é “só isso”.

As religiões todas do Ocidente e do Oriente, mesmo as que têm a ver com a prosperidade, ainda assim são crenças na vida como algo que não passe de um “só”. É nesse ponto que as religiões vão para um lado, e eu para outro. É que os religiosos são pouco humildes, eles se acham merecedores de algo maior que esse milagre da vida. Humildade não é uma boa virtude, eu sei. Os religiosos não a seguem. Eu também não. Sou capaz de me dar conta da maravilha que tenho feito fazendo o que faço nesse milagre que é a vida. Sou quase um deus, como todos nós somos. Pois se cada um fizer uma retrospectiva do que fez na vida efetiva, verá que fez muito, fez milagres. Estar vivo é um milagre. Ora, milagres não precisam se repetir.
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*Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

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