domingo, 2 de maio de 2010

O nariz não cresce, mas...


...vários gestos e formas de se comportar já foram identificados pela ciência como sinais de mentira. A explicação está no cérebro, que entra em conflito quando a pessoa insiste em dizer algo diferente da verdade

Silvia Pacheco

A mentira é um ato que sempre deixou o ser humano intrigado, afinal ninguém gosta de ser enganado. Ela faz parte, porém, da comunicação entre as pessoas e, pode-se dizer, serve até como estratégia de defesa de algumas espécies. Um exemplo seria a capacidade de animais como o camaleão de mudarem de cor para enganar os predadores. Entre os homens, evitar a verdade pode ser também uma maneira de manter em equilíbrio as relações sociais, evitando mágoas e conflitos desnecessários. “São mentiras convencionais, utilizadas para diminuir danos que surgiriam se falássemos a verdade”, aponta Rafael Boechat, psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). O médico lembra, no entanto, que a mentira pode ser usada com as piores intenções. “Ela se torna algo condenável quando passa a causar prejuízos tanto no plano moral quanto no material”, completa.

Por isso, a ciência se dedica há anos a buscar formas de identificar se uma pessoa está sendo sincera ou não. E a resposta para essa dúvida está na observação minuciosa dos gestos, ou linguagem corporal. Para os especialistas no assunto, é mais fácil mentir com as palavras do que com o corpo. “A leitura corporal pode nos dar algumas pistas não verbais que indicam quando alguém está mentindo”, afirma Mônica Portella, psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). O gesto e a postura corporal podem indicar contradições entre aquilo que o indivíduo diz e o que se manifesta em seu comportamento. De acordo com pesquisas da psicologia experimental, o ser humano conta em média 210 mentiras, dos mais variados tipos, por dia. “Alguns estudos também estimam que mentimos a cada 20 minutos”, reforça Paulo Camargo, especialista em linguagem corporal.

Para comprovar que a mentira pode ser percebida pela observações do corpo, Paul Ekman, psicólogo norte-americano pioneiro nos estudos sobre o tema, examinou as reações fisiológicas de estudantes universitários em laboratório quando mentiam. Segundo Ekman, foram observadas variações no ritmo da respiração dos entrevistados, elevação no registro da voz, maneiras específicas de se movimentar e sinais de tensão que a pessoa tenta esconder. “A única forma de possibilitar a detecção da mentira é treinar as pessoas a reconhecê-la sem computadores e sem padrões de medição. Apenas fazê-las usar os olhos e os ouvidos”, receita o psicólogo.

Para detectar a mentira, o especialista em linguagem corporal — técnica cada vez mais estudada por diversos profissionais, como psicólogos, médicos, juízes e advogados — leva em conta diversos sinais dados pelo corpo (veja acima). Porém, todos esses gestos nunca devem ser interpretados isoladamente. “Eles são como uma conjuntura. Não dá para avaliar cada um isolado”, esclarece Camargo.

Córtex pré-frontal

Os sinais mais importantes a serem observados estão no rosto da pessoa. Isso porque inibir uma expressão facial espontânea é muito difícil e nem sempre a pessoa está atenta o suficiente para antecipar sua ocorrência e controlá-la a tempo de escondê-la com outra expressão. “Quando falamos, podemos nos monitorar com a audição. O mesmo não ocorre com as expressões faciais autênticas, que, além de não possuírem um sistema de feedback sensorial, são involuntárias e possuem um tempo de duração relativamente curto”, explica Mônica Portella.

“Por outro lado, pode-se dizer que demonstrar na face uma emoção que não é sentida nem sempre é possível, porque as vias neurais subjacentes às expressões espontâneas e às expressões posadas são diferentes, e os músculos faciais respondem de maneira distinta a estímulos provenientes da cada uma”, completa a psicóloga.

A explicação para o fato de os gestos do mentiroso o traírem está no cérebro. Segundo Boechat, a tendência natural do órgão é falar a verdade. Ao processar uma pergunta, o córtex pré-frontal encontra a resposta verdadeira sem fazer esforço. “Para mentir, é bem mais complicado”, garante o psiquiatra. Primeiro, o cérebro tem de eliminar a resposta verdadeira. Depois, precisa buscar no seu banco de dados uma resposta alternativa: a mentira. Essa busca exige o funcionamento de outras regiões que cuidam da linguagem. Nessa confusão toda, uma parte do cérebro especializada em conflitos — o córtex cingulado anterior — é fortemente ativada. “Quando você mente ou esconde um segredo, é como se essa parte do cérebro ficasse gritando: ‘Mas eu sei que não é isso!’ O que deixa qualquer um aflito”, completa o professor da UnB. Mesmo assim, há quem consiga enganar bem os outros. “Existem pessoas que são especialistas em dissimular e, portanto, fica praticamente impossível descobrir a mentira”, diz Camargo.

Por mais que as técnicas de percepção da mentira se desenvolvam, dificilmente a ciência será capaz de esclarecer por que o indivíduo está mentindo. E motivos não faltam razões. A mentira pode servir para tentar se safar de algum crime, para agradar alguém próximo ou para simplesmente evitar problemas no trabalho. “Ninguém em sã consciência vai expor a pequena mentira do diretor da empresa ou do chefe direto”, lembra Camargo.

"Quando você mente ou esconde um segredo,
é como se o cérebro ficasse gritando:
 ‘Mas eu sei que não é isso! "
Rafael Boechat, psiquiatra e professor da UnB

Justiça não reconhece técnica
A Justiça brasileira não aceita a avaliação da linguagem corporal como evidência nos inquéritos criminais. Isso não significa, porém, que a técnica não possa vir a ser útil, de maneira complementar, em algumas atividades ligadas ao Judiciário. Na opinião da psicóloga da PUC-RJ Mônica Portella, esse tipo de avaliação poderia ajudar na elaboração de avaliações de soltura, por exemplo. “Um psicólogo, ao entrevistar um detento (para avaliar se ele já tem condições de sair do regime fechado), poderá ter, como complemento, conhecimentos para detectar a mentira”, acredita.

Paulo Camargo, que ministra cursos sobre a técnica, acredita que muitos profissionais podem se beneficiar desse conhecimento. “Um empresário que reconhece tais sinais de mentira com certeza sairá na frente ao estabelecer uma negociação”, exemplifica.

Na opinião do psiquiatra da UnB Rafael Boechat, os sinais emitidos pelo mentiroso devem ser estudados por médicos, pois podem ser uma ferramenta auxiliar para realizar diagnósticos. Em alguns casos, relata o médico, os pacientes utilizam a mentira como mecanismo de defesa, para esconder algum problema. “É preciso saber interpretar a mentira. Às vezes, o paciente a utiliza para chamar a atenção para alguma outra coisa, algum problema que o médico não detecta no exame clínico.” Contudo, os especialistas afirmam que a mentira não pode ser tratada como uma “receita de bolo”. “O estudo sério e científico requer a contextualização”, ressalta Mônica. (SP)
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Fonte: Correio Braziliense online, 02/05/2010

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