domingo, 9 de maio de 2010

A reforma da natureza - 'Vida sintética'


Área da biologia sintética, que prevê alterar radicalmente organismos,
 começa a trazer dividendos industriais

Quem ainda se arrepia só de pensar em soja transgênica talvez devesse repensar suas preocupações. Em vez de um ou outro gene estranho inserido em vegetais que, de resto, são prosaicos, que tal organismos transformados da cabeça aos pés, otimizados para fazer todo tipo de serviço industrial ou médico? A ideia não tem nada de impossível. Aliás, tais organismos já estão por aí.

Temores um tanto luddistas à parte, é nesse tipo de iniciativa, conhecido pelo nome de biologia sintética, que algumas das grandes esperanças de avanço econômico e melhora das condições ambientais do planeta estão sendo depositadas. E, embora ainda haja muito a ser feito, é indiscutível que a abordagem já esteja dando resultados viáveis economicamente, afirma Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, pesquisador da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que trabalha no ramo.

"Eu estive numa empresa nos Estados Unidos recentemente, e o plástico de que é feita a caneta que eu trouxe de lá foi produzido via biologia sintética", diz Pereira. "Então, a resposta é sim, já é uma realidade", enfatiza ele.

Um artigo recente na revista científica "Nature Reviews Genetics" confirma a tendência. Para os autores, Ahmad Khalil e James Collins, da Universidade de Boston (EUA), o campo "chegou à maioridade". Para a dupla, uma das principais utilidades dos organismos sintéticos -por enquanto, micróbios como bactérias e leveduras- é realizar operações lógicas, como se fossem computadores biológicos. Pereira, no entanto, prefere outra forma de explicar a área: trata-se de fazer com que os organismos de interesse se comportem de maneira que jamais seria "programada" neles pela evolução.

Só para elas

"Um exemplo são as leveduras com que trabalho. Elas produzem etanol, claro, que nós usamos como combustível, mas elas fazem isso para combater bactérias, não pelas razões que nos interessam."

É nesse ponto que as diferenças entre biologia sintética e simples criação de transgênicos ficam mais claras. "Você usa as mesmas técnicas de biologia molecular, mas o propósito é diferente", diz o pesquisador da Unicamp.

Em vez de inserir um ou dois genes na espécie que se quer modificar (o DNA que determina a bioluminescência de uma água-viva para fazer um camundongo brilhar no escuro, por exemplo), a ideia é embutir na criatura-alvo os genes de uma ou mais vias metabólicas inteiras. Tais vias correspondem a um conjunto de genes (ou melhor, das proteínas codificadas por eles) atuando em cascata, como um sistema, modificando de forma significativa o metabolismo do organismo.
Glicerol à vontade

Pereira dá outro exemplo de seu próprio trabalho: as mesmas leveduras que produzem etanol também fazem glicerol, mas em quantidades diminutas -apenas 2 gramas por litro. Uma mexida geral nas vias metabólicas do fungo microscópico, "desligando" alguns genes e aumentando a ativação de outros, permite aumentar a produção de glicerol para 46 gramas por litro, algo que provavelmente nem a seleção natural mais feroz seria capaz de produzir em milhões de anos.

Um dos sonhos de quem trabalha com biologia sintética é dar um passo além e permitir que os organismos de escolha produzam substâncias totalmente alheias a seu metabolismo natural -coisa que o plástico da caneta americana já mostrou ser possível, entre outros exemplos. A longo prazo, seria possível criar uma "petroquímica biológica", na qual derivados de petróleo seriam totalmente substituídas por produtos de leveduras ou bactérias engenheiradas, diz Pereira.

Outro grande objetivo é otimizar a produção de biocombustíveis -em seu artigo, Khalil e Collins apontam, por exemplo, que seria possível buscar uma escala industrial para formas mais energéticas de álcool que o etanol, como o butanol, modificando os organismos fermentadores mais utilizados hoje. E, claro, já há progressos na área médica, como protótipos de vírus modificados para atacar de forma específica células cancerosas ou bactérias no organismo.

Apesar do fascínio desses avanços, não seria exagero falar em "vida sintética"? Afinal, poucos pesquisadores falam em montar criaturas totalmente artificiais, compostas, por exemplo, de aminoácidos que hoje não são encontrados na natureza. "Não acho que isso seja necessário. Ninguém deixa de escrever um livro novo por falta de letras no alfabeto, mas sim por falta de ideias. É a mesma coisa: os elementos básicos que temos na mão são mais do que suficientes para fazermos coisas fantásticas", diz Pereira. Para ele, a cadeia produtiva do etanol no Brasil deve dar ao país vantagens competitivas para avançar na área.
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Reportagem REINALDO JOSÉ LOPES
Fonte: Folha online, 09/05/2010

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