sábado, 1 de maio de 2010

Romance de Nick Hornby fala da relação da vida moderna com a internet

Victoria Saramago*
RIO - Há quem diga que o romancista inglês Nick Hornby foi um grande incentivador da atual mania de fazer listas. Os 10 melhores discos, as três piores tardes de domingo, os cinco melhores beijos – e por aí vai: tudo cabe em intermináveis relações de eventos/objetos que vão moldando nosso passado e nosso entendimento da realidade. Adotando o padrão Hornby de classificação do mundo, não seria exagero dizer que, no rol de suas obras, Juliet, nua e crua está na lista dos Top 5.

Vamos à trama para entender por quê. O álbum Juliet é, para muitos, a obra-prima do roqueiro dos anos 80 Tucker Crowe, “um dos maiores discos de amor e separação da história do rock” e o ápice de uma carreira brilhante que se encerraria subitamente em 1986, com a inexplicável retirada de Crowe dos palcos e, aparentemente, da civilização. Pelo menos é o que defende a meia dúzia de crowologistas, isto é, seguidores de Crowe que dedicam boa parte de seu tempo a criar teorias mirabolantes para destrinchar suas músicas e sua história em fóruns obscuros na internet.

Um desses estranhos estudiosos é Duncan, sisudo professor universitário de Gooleness, cidadezinha costeira e decadente no norte da Inglaterra. E uma das pessoas mais cientes dos exageros que acompanham o mito de Crowe é Annie – não por acaso, a esposa insatisfeita de Duncan.

Dona de uma sensatez deliciosamente implacável, Annie até aprecia a obra de Crowe, mas está mais preocupada com o casamento frustrado, a falta de filhos e os 40 anos batendo à porta do que com um astro semidesconhecido e perdido no tempo, cujo nome continua a ser discutido apenas porque a internet existe. Pois, diminuindo as distâncias, possibilitando a troca de arquivos sonoros e reunindo pessoas que jamais se encontrariam de outra forma, a internet permite a criação dessa espécie de realidade paralela na qual qualquer ideia pode ganhar status de verdade, na qual qualquer maluco (não raro literalmente) pode ter a autoridade de um especialista. “Então a internet aparecera e mudara tudo”, conclui Annie. Em resumo, a internet permite que mitos fiquem mais míticos, que teorias da conspiração soem mais plausíveis e que um artista distante pareça ainda mais inacessível.

Mas permite também o contrário. E aqui a história começa a ficar interessante. Afinal, o que aconteceria se Crowe não fosse tão inalcançável assim, se eventualmente conferisse o que a meia dúzia de fãs esquisitões especulam a seu respeito, se tivesse um endereço de e-mail e um bom motivo para deixar os EUA e visitar a Inglaterra?

Estão aí os ingredientes principais que movem o enredo de Juliet, nua e crua. Isso em meio ao tédio de Gooleness; ao jogo de omissões e mal-entendidos que cerca as relações entre os personagens; aos tênues limites que separam o real do virtual e o fato da fantasia; ao passado tempestuoso de Crowe, com sua atual penca de filhos e ex-mulheres; e nesse período da vida, sem hora certa para ocorrer, em que as pessoas se veem na necessidade de fazer um balanço do que já viveram e do que ainda dá tempo de realizar. Os três protagonistas tentam se equilibrar e buscar, por vezes em vão, alguma combinação de todas as variáveis que dê algum sentido às suas vidas.

Acrescente-se à mistura o wit britânico de Hornby e o timing>/i> certeiro de suas piadas. E também, sejamos francos, sua tendência a transformar alguns dos personagens secundários em estereótipos pouco convincentes, como é o caso do psicanalista de Annie, ou de prolongar além do necessário cenas que, no fim das contas, não mereceriam tanta atenção – OK, não citemos as sessões de análise de Annie, mas algumas de suas divagações, bem como as de Duncan, poderiam ser ligeiramente editadas.

Ainda assim, o romance possui aquele ar leve e despretensioso que marca o estilo de Hornby desde Alta fidelidade – e acerta quem põe Juliet, nua e crua como herdeiro direto na linha de sucessão daquele romance de estreia.

É verdade que, em relação ao primeiro, o mais recente traz uma série de novidades. E-mails trocados pelos personagens convivem com a narração em terceira pessoa. Supostas transcrições dos fóruns dos crowologistas dão o tom final da história. E é bem possível que as colagens de entradas na Wikipedia sobre Tucker Crowe e seu mundo levem o leitor mais curioso a jogar “Tucker Crowe” ou “Juliet” no Google para checar o que acontece. Porque o Google é o elemento catalisador da trama, ao lado dos e-mails, fóruns e MP3. E não deixa de ser interessante notar que a fictícia cidadezinha de Gooleness por pouco não se chame Googleness, isto é, algo como googleidade ou “o ato ou efeito de ser Google”.

Pois Gooleness e seus protagonistas levam longe o conceito de aldeia global. Annie, Duncan e Tucker seriam googlers até a raiz dos cabelos, não fosse um pequeno detalhe: nasceram numa época pré-internet. Não conseguem se desfazer de seus vinis e duvidam de sua capacidade de anexar uma simples fotografia a um e-mail. As maravilhas da tecnologia não foram ainda totalmente domesticadas por nenhum deles, por maior que seja a dependência dos computadores que acabam desenvolvendo.

“A primeira vez que Duncan vira seu computador preencher os nomes das faixas do CD que colocara ali dentro, simplesmente não acreditara. Era como se ele estivesse vendo um mágico que, realmente, possuísse poderes; não adiantava procurar uma explicação para o truque, porque não havia nenhuma, ou melhor, não havia nenhuma que ele entendesse”. A passagem acima, mais do que exemplo da falta de familiaridade de Duncan com seu PC, evidencia um dos aspectos provavelmente mais fascinantes da prosa de Hornby: tal como se dá em Alta fidelidade, o que está em foco não são precisamente as últimas tecnologias mas a transição das antigas para as novas. É o vinil engolido pelo CD, e o CD engolido pelo MP3. É a impossibilidade de jogar fora os vinis, é o medo de se desfazer do objeto (vinil, CD) para o impalpável (os arquivos no computador). É esse misto de avanço e nostalgia não apenas um dos temas mais recorrentes do autor mas um dos motores de Juliet, nua e crua.

A tradução de Paulo Reis flui bem e, o que é importante no caso de Hornby, muitas das soluções encontradas para gírias e expressões idiomáticas transmitem, com boa dose de precisão, o universo pop-nostálgico da trama. Afinal Nick Hornby é o que se poderia considerar um escritor pop. Suas histórias são carregadas de referências roqueiras e têm esse ar indefectível de que estão prestes a pular para as telas do cinema. Juliet, nua e crua tem tudo isso, talvez com um tom um pouco mais sério e conflitos mais bem desenvolvidos. Certamente não é dessas obras que mudam a vida, mas tem potencial para mudar um fim de semana.
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*Autora do romance Renée esfacelada e mestre em literatura brasileira pela UERJ.
Fonte: Jonral do Brasil online - 30/04/2010

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