segunda-feira, 3 de maio de 2010

Uma declaração: os Direitos da Mãe Terra

Leonardo Boff*

RIO - Como é sabido, em dezembro de 2009 realizou-se em Copenhague a Conferência Mundial dos Estados sobre o Clima. Não se chegou a nenhum consenso porque foi dominada pela lógica do capital e não pela lógica da ecologia. Isso significa: os delegados e chefes de Estado presentes representavam mais seus interesses econômicos que seus povos. A questão para eles era: quanto deixo de ganhar aceitando preceitos ecológicos que visam purificar o planeta e assim garantir as condições para a continuidade da vida? Não se via o todo, a vida e a Terra, mas os interesses particulares de cada país.

A lógica ecológica vê o interesse coletivo, pois visa o equilíbrio entre ser humano e natureza, entre produção, consumo e capacidade de recomposição dos recursos e serviços da Terra. Rompendo esta equação, coisa que o modo de produção capitalista já vem fazendo há séculos, surgem efeitos não desejados, chamados de “externalidades”: devastação da natureza, graves injustiças sociais, desconsideração das necessidades das futuras gerações e o efeito irreversível do aquecimento global que, no limite, pode pôr tudo a perder.

Em Cochabamba, na Bolívia, viu-se exatamente o contrário: o triunfo da lógica da ecologia e da vida. Nos dias 19-23 de abril celebrou-se a Cúpula Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra. Aí estavam 35.500 representantes dos povos da Terra, vindos de 142 países. A centralidade era ocupada pela Terra, tida como Pacha Mama, Grande Mãe, sua dignidade e direitos, a vida em toda sua imensa diversidade (superação de qualquer antropocentrismo), nossa responsabilidade comum para garantir as condições ecológicas, sociais e espirituais que nos permitem viver, sem ameaças, nesse planeta.

As 17 meses de trabalho, ao contrário de Copenhague, chegaram a um extraordinário consenso, pois todos tinham na mente e no coração o amor à vida e à Pacha Mama, “com a qual todos temos uma relação indivisível, interdependente, complementar e espiritual”, como diz o documento final.

No lugar do capitalismo competitivo, do progresso e do crescimento ilimitado, hostil ao equilíbrio com a natureza, colocou-se “o bem viver”, categoria central da cosmologia andina, verdadeira alternativa para a humanidade que consiste em: viver em harmonia consigo mesmo, com os outros, com a Pacha Mama, com as energias da natureza, do ar, do solo, das águas, das montanhas, dos animais e das plantas, e em harmonia com os espíritos e com a Divindade, sustentada por uma economia do suficiente e decente para todos, incluídos os demais seres.

Elaborou-se uma Declaração dos Direitos da Mãe Terra que prevê entre outros: o direito à vida e à existência; o direito de ser respeitada; o direito à continuação de seus ciclos e processos vitais, livre de alterações humanas; o direito a manter sua identidade e integridade com seus seres diferenciados e inter-relacionados; o direito à água como fonte de vida; o direito ao ar limpo; o direito à saúde integral; o direito a estar livre da contaminação e poluição, de dejetos tóxicos e radioativos; o direito a uma restauração plena e pronta das violações inflingidas pelas atividades humanas.

Previu-se também a criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática e Ambiental, com capacidade jurídica e vinculante de prevenir, julgar e sancionar os Estados, empresas e pessoas por ações ou omissões que contaminem e provoquem mudanças climáticas e que cometam graves atentados aos ecossistemas que garantem o “bem viver”.

Resolveu-se levar os resultados desta Cúpula dos Povos à ONU para que seus conteúdos sejam contemplados na próxima Conferência Mundial, a realizar-se em novembro/dezembro deste ano em Cancún, no México.

O significado mais profundo desta Cúpula é a convicção, crescente entre os povos, de que não podemos mais confiar o destino da vida e da Terra aos chefes de Estado, reféns de seus dogmas capitalistas.

O Brasil lamentavelmente não enviou nenhum representante, pois para o atual governo parece ser mais importante a “aceleração do crescimento” do que garantir o futuro da vida. A Cúpula dos Povos apontou a direção certa: para uma biocivilização em equilíbrio de todos com todos e com tudo.
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*Leonardo Boff é teólogo.
Fonte: Jornal do Brasil online - 02/05/2010

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