domingo, 20 de junho de 2010

Richard Steiner* - Entrevista

Política rasa em águas profundas

Na linha de negar riscos, prospectores avançam sem supervisão nem tecnologia.
‘O Brasil que se cuide’, alerta biólogo

Mancha indelével.
O governo norte-americano admite que o
efeito ambiental do vazamento no
Golfo do México deve se estender
 por anos

"Não é a primeira vez que sobrevivemos aos britânicos." O anúncio de TV com essa frase foi retirado do ar, mas sua existência, que a internet há de perpetuar, dá uma medida da fervura de sentimentos que emergiu do desastre ecológico e econômico provocado pela explosão da plataforma da BP há dois meses.
O anúncio foi criado para promover o turismo em New Orleans, prestes a marcar o quinto aniversário do furacão Katrina. Era uma referência à Batalha de New Orleans, de 1814, em que os americanos, liderados por Andrew Jackson, enxotaram o antigo poder colonial do recém-adquirido território reclamado pelos franceses (alguém aí acredita que o jazz teria nascido se o resultado da batalha fosse outro?) Por ironia cruel ou fortuita, a campanha publicitária do New Orleans Convention and Visitors Bureau foi financiada com um cheque de US$ 5 milhões da BP, a multinacional de petróleo que Barack Obama insistiu em chamar pelo seu nome antigo - British Petroleum - numa famigerada entrevista à televisão americana nessa semana.
A autocensura de New Orleans, motivada pelos protestos contra sentimentos antibritânicos, mostra que, além de não saber tapar o vazamento, os britânicos, com ou sem abreviação, andam perdendo seu lendário humor. Foi só Obama comparar a desolação do Golfo do México ao 11 de Setembro para jornais ingleses correrem atrás de líderes dos parentes das vítimas do atentado às torres gêmeas, indignados com a tentativa presidencial de interferir em seu monopólio sobre a compaixão.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come a gestão de Obama, que, tal qual os pelicanos cobertos de óleo e incapazes de voar, parece atolada pela percepção de que o presidente agiu tarde - e mal. Um desastre com sua própria webcam, exibindo as imagens turvas do óleo incessante, seria uma sangria para qualquer governo. Mas, ao contrário do unidimensional George W. Bush, com sua negligência criminosa pós-Katrina, temos o multifacetado e cerebral Barack Obama, acusado, a um só tempo, de enfrentar crises com retórica e de não usar linguagem emocional o bastante para expressar sua solidariedade com a população afetada no Golfo do México.
O respeitado biólogo marinho e consultor ambiental Richard Steiner conhece bem a espinhosa encruzilhada da política com o desastre ecológico. Veterano do vazamento do navio-tanque Exxon Valdez, em 1989, ele acaba de renunciar à cátedra na Universidade do Alasca sob pressão do establishment do Estado de Sarah Palin. As autoridades o puniram por prever que um desastre como a explosão da plataforma Deepwater Horizon poderia ocorrer nas águas pristinas do Ártico.
Nesta entrevista, o também consultor de governos internacionais defende melhores critérios de segurança para a indústria que ele considera gravemente insegura. E já começa com um alerta ao Brasil.

Se o sr. fosse um biólogo marinho brasileiro, o que tentaria apreender dessa catástrofe?
Eu diria que os brasileiros devem se preocupar, e muito, com o risco da prospecção offshore. E, se o governo vai levar seus planos adiante, deve fazer isso exigindo a melhor tecnologia disponível para reduzir o risco de uma explosão semelhante à da Deepwater Horizon, tecnologia que aliás está sendo desenvolvida enquanto conversamos. São as two-shear hydraulic rams (travas hidráulicas de lâmina dupla), destinadas a selar o blow pipe (a tubulação de escape). A maioria das travas hoje só tem uma lâmina. Outra sugestão que eu faria aos brasileiros é que seja perfurado, mesmo durante a fase exploratória, um poço de alívio próximo. Em caso de explosão, não seria preciso esperar meses para a solução do caso, como ocorre no golfo. Os brasileiros têm todos os motivos para olhar para o que acontece aqui e se preocupar porque um acidente pode ser catastrófico.

A tecnologia disponível cobre o risco da prospecção de petróleo em profundidade?
Não cobre. Mas, se a prospecção vai ser levada adiante, deve haver a compreensão do risco real de uma catástrofe. A indústria demonstrou que não consegue fazer um top kill (injeção de lama pesada para exercer pressão contrária) em águas profundas.

Vamos voltar às vésperas da explosão da plataforma. Quanto do ecossistema do Golfo do México já havia sido destruído?
Ainda bem que você tocou no assunto, a mídia não está falando disso. Aquela área já estava muito prejudicada. O controle de lodo no Rio Mississippi reduziu as áreas para as aves marinhas construírem seus ninhos. Há muito menos sedimento vindo do Mississippi, de modo que o delta do rio está encolhendo. O uso de fertilizantes na agricultura, por sua vez, tem provocado as chamadas zonas mortas, que se formam em períodos sazonais. Quando os fertilizantes descem para o mar há uma explosão de plâncton, que absorve o oxigênio e dizima a vida marinha naquela área. Junte a isso o impacto do aquecimento global, que trouxe tempestades intensas. Esperamos, aliás, uma temporada violenta de furacões neste ano.

Qual sua opinião sobre a reação do governo federal e de Barack Obama ao acidente?
Tanto o governo como a BP foram lentos para entender a enormidade do desastre. Leve em conta que o vazamento do Exxon Valdez demorou seis horas e o vazamento do golfo ocorre há dois meses. Vamos admitir que isso influi na percepção. A responsabilidade de prevenir o acidente era da BP, da Halliburton e da TransOcean. Eles não tinham uma estratégia. Acho que a responsabilidade era 80% deles e 20% do governo. Mas 80% da responsabilidade federal recai sobre o governo de George Bush, que derrubou regulamentações à indústria. Chamamos a atenção da equipe de transição de Obama, no ano passado, para o que acontecia na Minerals Management Service, a agência que regula a indústria de petróleo. Quero também lembrar que, durante toda a crise do Exxon Valdez, George Bush pai não botou os pés no Alasca, a despeito dos nossos apelos. Obama já foi ao golfo quatro vezes. Ele deu muito mais atenção a esse desastre do que Bush pai.

O senhor foi ouvido por governos locais, pelo governo federal ou por empresas a respeito desse acidente?
Tenho sido consultado por ONGs, nacionais e estaduais, e por comitês do Congresso. E tratei com a frente unificada montada pelo governo para conter o desastre, mas não tenho contrato com ninguém.

Quem diz que o vazamento é uma oportunidade para uma virada na política energética está sendo ingênuo?
Espero que seja uma oportunidade. Se nada mais emerge de um desastre como esse, esperemos ao menos algo construtivo. A verdadeira lição desse desastre é sobre o custo oculto do petróleo. Espero que possamos nos mobilizar para fontes alternativas de energia. Podemos ser até acusados de ingenuidade, mas ainda assim temos que insistir nisso. Temo que seja desperdiçada a última grande chance de promover energia sustentável antes de um colapso ecológico. O que conseguimos obter com o Exxon Valdez? Só navios-tanque mais seguros.

A catástrofe ambiental do golfo é amplificada pela crise econômica. É possível conciliar a pressão econômica local com o abandono da exploração de petróleo em profundidade?
É possível, mas politicamente difícil. Há muitos empregos na área de energia sustentável. O governo deve oferecer subsídios para acabar progressivamente com nossa dependência do petróleo. É preciso comunicar ao público o verdadeiro custo dessa dependência energética. O prejuízo desse desastre já está calculado em US$ 20 bilhões, e deve subir. Isso sem contar o que gastamos na guerra do Iraque para defender nosso acesso ao óleo. Quanto mais cedo a transição for feita, melhor não só para o planeta, mas também para o bem-estar econômico deste país. Já estamos 40 anos atrasados, deveríamos ter despertado no começo dos anos 70.

Há ambientalistas defendendo um aumento expressivo do número de reservas marinhas. É uma solução útil a curto prazo?
Com toda a certeza. Menos de 1% dos oceanos está sob proteção, enquanto as reservas mundiais em terra cobrem de 10% a 12% da superfície do planeta. Nós chamamos as reservas de "planejamento espacial marinho". Elas devem ser demarcadas estrategicamente. A moratória que o governo americano acaba de decretar na exploração em profundidade deve ser mantida até termos mais controle sobre a tecnologia usada. Não temos os protocolos corretos sobre as plataformas nem a supervisão governamental. E comemoro especialmente o fato de que a exploração de gás e petróleo no Ártico não vai começar no mês que vem. Jamais deveriam explorar aquela área.

O senhor encerrou sua carreira universitária de 30 anos por causa da controvérsia sobre a exploração no Alasca, certo?
Sim. Todo ano, como professor da Universidade do Alasca, eu recebia bolsas de pesquisa federais - até o ano passado, quando alertei sobre o risco da exploração na Baía de Bristol, o maior santuário de salmão vermelho do mundo. Argumentei que uma explosão poderia provocar uma catástrofe na baía. Por causa da pressão econômica local para a exploração, fui acusado de tomar uma posição política e suspenderam minha bolsa. Movi uma queixa contra a universidade, que é uma instituição estadual, e perdi. Por isso pedi demissão, há três meses. Agora, meus críticos parecem uns tolos.

O desastre do golfo chamou a atenção para a região do Delta do Níger, onde vaza óleo constantemente há cinco décadas. Aquela área simboliza o pior dano ambiental causado pela exploração de petróleo até hoje?
Sim, e eu fui um dos responsáveis pelos cálculos, com cientistas e o governo nigeriano. Estimamos que de 5 milhões a 11 milhões de galões de petróleo vazaram ali nos últimos 50 anos, um desastre ignorado sistematicamente pelo mundo desenvolvido. Os EUA importam 10% de seu petróleo da Nigéria e não prestam atenção a isso.

Há uma tendência de atribuir grande parte dos vazamentos aos atos de sabotagem de grupos terroristas da Nigéria. Mas o senhor argumenta que companhias de petróleo não calculam corretamente sua responsabilidade nos acidentes.
Veja, é comum tanto as companhias de petróleo como os governos subestimarem os vazamentos. É comum superestimarem a eficácia de suas técnicas de limpeza. E, por fim, é comum subestimarem os riscos envolvidos. Garanto que você ainda há de ver isso acontecer no Brasil. Uma solução preventiva é envolver organizações não governamentais para monitorar, manter o público informado e fazer pressão.

Por que os Estados Unidos não conseguem desenvolver uma política energética?
Porque vivemos uma disfunção sistêmica em que o poder do lobby do petróleo é enorme graças à maneira como as campanhas políticas são financiadas. Tivemos três mandatos de presidentes íntimos dessa indústria, com Bush pai e Bush filho. As companhias de petróleo e gás gastaram mais de US$ 150 milhões fazendo lobby em 2009. Quem pode competir com isso? O lucro deles é obsceno e eles podem financiar suas campanhas para evitar aumento de impostos sobre combustíveis.

Esta é a primeira catástrofe ecológica provocada pelo homem na era do Twitter e do YouTube. O senhor acha que a profusão de imagens ajuda a mobilizar o sentimento do público a distância? Ou a enxurrada de informação pode tornar as pessoas insensíveis?
Acredito que há um pouco dos dois, mas ainda vejo o fenômeno cibernético como positivo. Na época do Exxon Valdez não havia internet nem celulares lá. Hoje qualquer fato adquire logo uma escala global. E sabemos que as imagens em vídeo são muito efetivas. Mas há, sim, o problema da difusão de muita informação incorreta. É difícil o público separar o joio do trigo.
_______________________________
*Biólogo marinho e consultor ambiental
Reportagem de Lúcia Guimarães

Fonte: Estadão online, 20/06/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário