terça-feira, 29 de junho de 2010

Tomada da Bastilha no Brasil

Sylvain Levy*

A Revolução Francesa foi um processo de transformação do Estado, do governo e da sociedade que durou mais de 10 anos (1789 a 1799) e cujo início pode ser marcado pela convocação da Assembleia dos Estados Gerais, em maio de 1789. Entretanto, a data escolhida como emblemática para caracterizar o movimento foi 14 de julho de 1789, quando o povo tomou a Bastilha, prisão onde eram encarcerados os presos políticos e que na época totalizavam apenas oito. A tomada significou o fim dos privilégios e foram proclamadas a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

O Brasil de tantas reformas, revoluções e transformações vive um processo de redemocratização de suas estruturas políticas, econômicas e sociais desde 1985, mas só poderá considerar encerrado o ciclo quando a nossa Bastilha for tomada: a democratização do Poder Judiciário.

Em um sistema pleno de prerrogativas não pode haver igualdade. Ou, como escreveu Millôr Fernandes: “A justiça é cega e aí começa a injustiça”. Enquanto houver prerrogativas haverá privilégios, e com privilégios não há igualdade. Justiça com privilégio é justiça sem equidade, sem isonomia.

A transformação do Judiciário não é um desafio para um governo, mas sim um desafio para o Estado. É a nossa Bastilha a ser derrubada. É necessário libertar o Brasil dessa in-justiça que, há séculos, aprisiona seu povo.

Freud dizia que uma civilização se caracteriza como tal quando as leis existentes servem para que um indivíduo se defenda do outro, para que a sociedade se defenda dos indivíduos e para que os indivíduos se defendam do Estado (e governo).

Apenas num Estado-nação, no qual prevalece um sistema de pesos e contrapesos entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e em cujo Judiciário coexistem em harmonia o cidadão, a sociedade e o governo é possível falar de civilização. Porém, quando um dos poderes se omite (o Legislativo) e outro subordina os demais (o Executivo), o sistema de contrapesos não é operante, ou melhor, opera privilegiando um deles (obviamente o Executivo).

Do mesmo modo, quando inexiste harmonia entre os segmentos — indivíduo, sociedade e governo —, já que persistem privilégios do governo e de alguns indivíduos, qualquer esforço de ministrar a equidade fica desequilibrado. E esse desequilíbrio sempre pende para o lado mais forte, que nunca é o do indivíduo.

O foro privilegiado para autoridades, dirigentes e políticos, assim como a prisão especial para os portadores de curso superior, ofende a igualdade entre os cidadãos e entre os extratos da sociedade, transformada em associação de castas: quem é doutor (tem diploma) merece coisa melhor; quem tem poder é diferente (e diferenciado).

Outro foro privilegiado, sem estar explicitado em lei, mas de uso corrente nos códigos de processos legais e que orientam a tramitação de todas as demandas nos órgãos do Judiciário, é o do poder econômico. “Rico não vai preso.” Muitas vezes nem é julgado, por força das infindáveis possibilidades de recursos que os códigos proporcionam a quem dispõe de bons (e caros) advogados, que podem dedicar tempo, engenho e arte aos processos do clientes. Consequentemente, outra casta se forma: a dos ricos. Outra injustiça se estabelece, e assim nossa sociedade se conforma.

Ao governo, tudo! Aos outros, a letra fria da lei. As prerrogativas do governo nas lides judiciais são conhecidas como prazos contados em dobro, citação pessoal (na Justiça do Trabalho, por exemplo, não vale nem citação por meio eletrônico), entre outros. No entanto, o mais desigual e anti-isonômico é a própria Justiça. Juízes, desembargadores e ministros não precisam se ater a prazo nenhum. Julgam quando (e se) se sentem competentes para tal. Em função disso, processos se arrastam por anos.

Para realçar a diferença com os demais, os juízes sentam-se em tablados que os colocam acima dos demandantes, usam roupas (togas) que os diferenciam de todos e, principalmente, se utilizam de um idioma próprio, que os torna compreensíveis apenas pelos iniciados, distanciando-os do cidadão comum, do indivíduo e da sociedade em geral.

A tal ponto chega esse processo de desidentificação social que seu órgão máximo designa-se como Supremo: Supremo Tribunal Federal, ou seja, suas decisões são irrecorríveis e seus membros inalcançáveis, o que os distancia (instituição e membros) do objetivo concreto de impor um limite às apelações.

Nenhuma mudança estrutural no país estará completa sem que a Justiça se integre à sociedade, sem que seus integrantes se considerem cidadãos, como o são na realidade. Sem que a sociedade tome essa Bastilha.
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*Psicanalista, é membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília
Fonte: Correio Braziliense online, 29/06/2010

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